Por João Luiz Mauad
Domingo é sempre um dia terrível para os liberais lerem a página de opinião do Globo. Dois colunistas fixos transbordam esquerdismo naquela página aos domingos: Luiz Fernando Veríssimo e Cacá Diegues. Normalmente, não leio esses autores, mas no último domingo chuvoso resolvi arriscar. E me dei mal! Deparei-me com um artigo do Cacá Diegues de provocar enjoo em copo de bicarbonato. Depois de discorrer sobre o debate entre Hillary e Trump, além das eleições nos EUA, Diegues finalmente, nos últimos parágrafos, diz a que veio:
“Desde Bretton Woods que a economia é um assunto de esquerda, uma tentativa de organizar o mundo de uma maneira aparentemente mais justa, com maior controle da riqueza. A direita pode até fingir se importar, mas na verdade está pouco se lixando para a economia, não é isso que mobiliza sua ideia de poder. Ao contrário da sofisticação dos que pensam o mundo, a direita quer apenas organizá-lo na base da lei e da ordem, como disse o próprio Trump. Esse é o modo de resolver todos os problemas sem se preocupar em resolver nenhum, a paz imposta como aparência de felicidade coletiva.
(…) Se não conseguirmos substituir a histeria mística e personalista da esquerda populista por algo mais democrático, efetivo e eficiente, jamais seremos capazes de enfrentar a direita desprovida de sentimentos.”
Não pretendo discorrer sobre a sua (dele) ideia de reformar a esquerda. Isso não é assunto meu. Minha preocupação aqui é a imagem que o valente pinta da direita (e acredito que os liberais estejam incluídos na concepção dele de direita), que ele afirma estar se lixando para a economia e de ser desprovida de sentimentos. Em outras palavras, só a esquerda entende de economia e só ela é capaz de melhorar o mundo, pois possui o monopólio das virtudes e dos bons sentimentos.
Trata-se, evidentemente, de uma coleção de disparates. Primeiro porque a esquerda é que sempre foi muito fraquinha em economia. Não raro, confunde intenções com resultados, além de ser incapaz de enxergar consequências de longo prazo de suas políticas, as quais, ademais, na maioria das vezes se chocam com a natureza humana. Peguemos alguns exemplos de políticas econômicas absolutamente antagônicas, defendidas por liberais e esquerdistas:
Protecionismo: enquanto a esquerda é francamente favorável a políticas protecionistas, os liberais favorecem radicalmente o livre comércio entre indivíduos e empresas, o que inclui as transações internacionais. Tal postura vai de encontro a muitos interesses empresariais, já que prejudicam os lucros de empresas nacionais estabelecidas, as quais, não por acaso, vivem pedindo tarifas e proteções aos seus negócios, sempre em detrimento dos consumidores e dos pagadores de impostos. Os efeitos das Políticas protecionistas, de forma geral, são: a transferência de renda dos consumidores para determinados produtores; a proteção de empresas ineficientes; a manutenção de alguns empregos em detrimento de outros tantos; o desestímulo a novos investimentos; a insatisfação dos consumidores e o empobrecimento geral da nação, graças à redução da oferta de produtos e serviços, bem como do respectivo aumento geral de preços.
Subsídios: Ao contrário da esquerda, os liberais são contra a concessão, pelos governos, de subsídios a empresas estabelecidas, seja através de transferências diretas ou créditos subsidiados, via bancos de fomento e assemelhados (BNDES). Entendemos que tais procedimentos prejudicam a concorrência e fomentam a ineficiência, além de punir os pagadores de impostos. Distribuir benesses a certos setores da economia costuma frear a competitividade, alimentar incompetência e corrupção, além de distorcer os preços relativos, com efeitos nefastos sobre toda a cadeia produtiva e, conseqüentemente, sobre a eficiência mesma dos mercados.
Incentivos fiscais: aqui está mais um ponto em que nossas visões são absolutamente antagônicas. Embora sejamos radicalmente favoráveis à redução da carga tributária, não apenas sobre aquela que incide sobre a renda, o trabalho e o consumo, mas também sobre a renda das empresas, somos contrários à concessão de incentivos fiscais que não sejam amplos e irrestritos, ou seja, que não se apliquem à totalidade da economia. Assim, combatemos incentivos pontuais, como aqueles concedidos amiúde à indústria automobilística brasileira, por entendermos que esses recursos acabam saindo dos bolsos dos pagadores de impostos.
Desregulamentação: Enquanto a esquerda trabalha diuturnamente para regulamentar cada vez mais a economia, sempre com a desculpa de proteger os consumidores, os liberais defendem exatamente o contrário. Ademais, é equivocado acreditar que a defesa da desregulamentação beneficia as empresas. Considere os setores tipicamente regulados em qualquer país do mundo, onde um pequeno número de grandes empresas é regulado e vigiado para (supostamente) defender um grande número de usuários. Os liberais sabem que, dependendo do poder concedido à autoridade responsável, a lucratividade de cada uma dessas empresas será fortemente influenciada pelas decisões daquela autoridade, e parece óbvio que irão operar com grande empenho e altas doses de recursos para influenciá-la – ou capturá-la, como ensinam os teóricos da Escolha Pública. Por outro lado, embora as agências reguladoras sejam criadas justamente para incitar a competição, na maioria dos casos elas acabam atuando em sentido diametralmente oposto. Por exemplo, estabelecendo requisitos mínimos de capital, licenças para operar e um sem número de rigorosas barreiras de entrada, supostamente com o intuito de proteger os consumidores, acabam tornando aquele setor altamente cartelizado.
Flexibilidade do mercado de trabalho: Se os liberais se colocam frontalmente contra as políticas trabalhistas que engessam o mercado, como salário mínimo, por exemplo, não é porque isso beneficie os empresários, mas porque acreditamos que essas políticas prejudicam sobremaneira os mais pobres, impedidos muitas vezes de vender o seu trabalho, se assim desejarem. Conforme explico neste artigo, o salário mínimo legal muitas vezes prejudica justamente aqueles a quem deveria beneficiar.
Sobre a direita ser desprovida de sentimentos, cujo monopólio estaria com os esquerdistas como Cacá, nada melhor do que recorrermos ao grande Bastiat e deixarmos que ele dê as respostas apropriadas:
Antes de mais nada, é necessário dizer que, malgrado não façamos uso dessas palavras rotineiramente, nós liberais também saudamos com emoção as virtudes da caridade, da solidariedade e da justiça. Conseqüentemente, desejamos ver os indivíduos, as famílias e as nações associarem-se e cada vez mais ajudarem-se mutuamente. Comovem-nos, tanto quanto a qualquer mortal de bom coração, os relatos de ações generosas e a sublime abnegação de algumas belas almas em prol dos mais necessitados.
Além disso, a maioria de nós quer muito acreditar nas boas intenções desses que pretendem extinguir dos corações humanos o sentimento de interesse, que se mostram tão impiedosos com aqueles que apelam ao individualismo e cujas bocas se enchem incessantemente das palavras abnegação, sacrifício, solidariedade e fraternidade. Queremos sinceramente admitir que eles obedecem exclusivamente a essas sublimes causas que aconselham aos outros; que eles dão exemplos tão bem quanto conselhos; que colocam as suas próprias condutas em harmonia com as doutrinas que defendem; queremos muito crer que suas palavras são plenas de desinteresse e isentas de hipocrisia, arrogância, inveja, mentira ou maldade.
Sim, pois cada um desses senhores tem um plano para realizar a felicidade humana, sempre apoiados na máxima de que é possível construir e planificar estruturas e relações sociais até alcançar o ideal da sociedade perfeita, da solidariedade, da caridade e da justiça social, ainda que para isso seja necessário o uso dos meios mais obscenos. Por conta desses ideais supostamente altruístas, se dão o direito de acusar aqueles que os combatem de egoístas, mesquinhos, interesseiros, etc. Essa, porém, é uma acusação injusta, pois se nos fosse demonstrado que é viável fazer descer para sempre a felicidade sobre a terra, através de uma organização social fictícia ou simplesmente decretando-se a fraternidade entre os homens, nós os acompanharíamos com imenso prazer.
Quem não gostaria de jogar sobre as costas do Estado a subsistência, o bem-estar e a educação de todos? De transformar o Estado nesse ser generoso, criativo, presente em tudo, abnegado em tudo, capaz de amamentar a infância, instruir a juventude, assegurar trabalho aos fortes, dar retiro aos débeis, que pudesse intervir diretamente para aliviar todos os sofrimentos, satisfazer e prevenir todas as necessidades, abastecer de capitais a todas as empresas, de luzes a todas as inteligências, de bálsamo a todas as feridas, de asilo a todos os infortunados?
Quem não gostaria de ver todos esses benefícios fluir da lei como uma fonte inesgotável? Quem não estaria feliz de ver o Estado assumir sobre si toda a pena, toda previsão, toda responsabilidade, todo dever, tudo isto que a providência, cujos desígnios são impenetráveis, colocou de laborioso e pesado a cargo da humanidade, e reservar aos indivíduos de que ela se compõe o lado atrativo e fácil; as satisfações, as certezas, a calma, o repouso; um presente sempre seguro, um futuro sempre sorridente, a fortuna sem cuidados, a família sem cargas, o crédito sem garantias, a existência sem esforços?
Certamente quereríamos tudo isso, se fosse possível. Mas, será possível? Eis a questão. Cremos que existe nesta personificação do Estado a mais estranha e a mais humilhante das mistificações. Que seria então este Ente que toma a seu cargo todas as virtudes, todos os deveres, todas as liberalidades? De onde sacaria seus recursos para derramá-los em benefícios sobre os indivíduos? Não seria dos próprios indivíduos? Como poderiam estes recursos multiplicarem-se passando pelas mãos de um intermediário parasitário e voraz? Não é claro que esse mecanismo é de natureza que absorve muito das forças úteis e reduz muito a parte dos trabalhadores?
Eis então a síntese de toda a nossa controvérsia. Enquanto eles buscam o ideal utópico da sociedade perfeita nos inúmeros planos e esquemas artificiais, nós, por outro lado, encontramos a harmonia na natureza do homem e das coisas. Simplesmente, não concordamos que se coloque a arbitrariedade, o imposto e a coação acima da liberdade individual. Não podemos admitir que se tire, de cada trabalhador, o direito universal e inalienável de utilizar os frutos do próprio trabalho da forma que melhor lhe convier.
Sobre o autor
João Luiz Mauad
João Luiz Mauad é administrador de empresas formado pela FGV-RJ, profissional liberal (consultor de empresas) e diretor do Instituto Liberal. Escreve para vários periódicos como os jornais O Globo, Zero Hora e Gazeta do Povo.
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