Já desde o fim do século XVI as matas férteis e impenetráveis vinham servindo de refúgio a escravos que se recusavam a aceitar a sua condição servil. Por volta de 1600, apareceram no atual estado de Alagoas os primeiros quilombos. A invasão holandesa a Pernambuco (1630-54) acelerou a fuga de negros e veio a ser o fato decisivo na formação da comunidade palmarina. Primeiro, porque os anos de luta desorganizaram a produção e provocaram um afrouxamento geral no controle sobre escravos. Segundo, porque a ocupação simultânea de Angola pelos holandeses introduziu mais escravos do que nunca no nordeste açucareiro, dentro daquele mecanismo de comércio triangular já estudado. Em outras palavras, a vida do escravo ficou valendo menos ainda do que já valia, o que fez recrudescer os maus tratos. E o próprio holandês, “bom civilizador”, conforme o estereótipo forjado em função do período do governo de Nassau, ajudou a piorar as condições de existência do negro ao introduzir novas técnicas de tortura, mais ferozes, como, por exemplo, a técnica da crucificação.
Fugindo sistematicamente para Palmares, localizada na Serra da Barriga, em Alagoas, os escravos criaram um reduto que, no começo, sobreviveu duramente através da coleta, caça e pesca ou atacando aldeias e fazendas. Raptaram moleques (crianças negras) e mulheres (o que sempre faltava, pois eram trazidos mais homens do que as mulheres da África) para o quilombo. Nessa fase, foram combatidos por duas expedições holandesas e a elas opuseram feroz resistência móvel, tal como fariam frequentemente no futuro. Lograram, dessa forma, escapar a uma destruição total e o quilombo foi oportunamente reconstruído.
Expulsos os holandeses do Brasil, as autoridades coloniais lusitanas retomaram a tarefa de combater os palmarinos e novas expedições foram enviadas. O problema era visto como “caso de polícia” e o objetivo imediato era devolver o negro ao serviço da lavoura. Entretanto, a força dos atacantes esbarrou na eficácia das guerrilhas dos escravos, tática que, segundo Décio Freitas, de inicialmente defensiva passou depois a ofensiva.
Depois de 1670, a companhia antipalmarina mudou de aspecto. Vendo que os negros sabiam se defender, tinham seus espiões e informantes e ainda contavam com o apoio de povoados vizinhos, com os quais comerciavam, as autoridades coloniais se deram conta de que estavam perante uma campanha longa e árdua. Além disso, mais do que simplesmente prender escravos fugidos, passou a ser interessante a posse de uma terra rica então localizada na capitania de Pernambuco, extremamente fértil para agricultura açucareira. Assim se entende porque a luta contra Palmares, a partir de então, não foi mais realizada por bandos afeitos a escaramuças mas por verdadeiras tropas, organizadas e preparadas para batalhas. As primeiras expedições organizadas dentro desse novo espírito foram as de Fernão Carrilho. Entretanto, como não lograram resultados iniciais satisfatórios, em 1768, os luso-brasileiros fizeram um acordo com os negros e reconheceram o direito do quilombo de continuar existindo.
Tal acordo, porém, não teve vida longa. Os negros não o apreciaram e envenenaram Ganga Zumba, o chefe que o firmara. Daí resultou o reencetamento da luta entre o governo e o quilombo palmarino, já agora sob o comando do sucesso de GangaZumba, o famoso Zumbi, o Espártaco negro da América tropical.
Por parte do governo português, a desaprovação do acordo, elaborado por seus representantes no Brasil, foi o fato decisivo no reinício das hostilidades. Para a Coroa, destruir o quilombo dos Palmares, passou a ser um imperativo político, pois não era possível tolerar um quisto daqueles num nordeste latifundiário e aristocrático.
Em 1687, a campanha contra Palmares passou para a direção de Domingos Jorge Velho. Ao mesmo tempo, do lado escravo, abandonou-se a tática da guerrilha – erro fatal – e partiu-se para a defesa fixa. Afirma-se que a presença de um mouro teria influído nisso, pois fortificou Palmares ao melhor estilo árabe da Espanha das guerras da reconquista.
A defesa fixa apressou o fim de Palmares entre 1695 e 1696. Lembra Édison Carneiro que, na luta derradeira, a participação paulista foi menor do que geralmente se pensa. O contingente paulista comando por Domingos Jorge Velho somou apenas 700 homens num total de 3000 – e destes 700, não mais de 300 efetivamente lutaram.
Segundo Décio Freitas, o que derrotou os escravos, mais do que o erro tático, foi o fato de que, a despeito de eventuais adesões e identificações, os negros estavam, afinal de contas, isolados no contexto da sociedade colonial, pois a massa de pobres, embora oprimida, era gente livre e raciocinava como gente livre, distanciando-se, portanto, socialmente do escravo e podendo, inclusive, teoricamente, utilizá-lo como mão-de-obra. Assim, as contradições homem livres-escravo pesavam mais do que a identificação de uma opressão sofrida em comum nunca sociedade que, ao cabo, só beneficiava a elite proletária. Em geral, os pobres livres não viram a luta do escravo como uma luta sua, contra um inimigo que era, na verdade, o inimigo comum. Portanto, dela se abstiveram de participar.
Enfim, os miseráveis e os escravos eram oprimidos do sistema colonial mas quando estes se levantaram contra ele, a diferença de condição entre homem livre e escravo pesou mais do que o fato de serem ambos produtos sofridos de uma mesma estrutura. Assim, os escravos se viram compelidos a levar sozinhos uma luta que, em caso de um resultado amplamente favorável, certamente não só a eles traria consequências benéficas.
O quilombo dos Palmares congregou várias aldeias ou mocambos num espaço de 60 léguas. Os chefes mais importantes formavam um conselho e, acima de todos, havia um chefe supremo que dava àquele esboço de governo uma aparência de monarquia despótica e centralizada, necessidade forjada nas contingências da luta. A centralização rígida veio a ser uma exigência inelutável em face do perigo que representavam os múltiplos particularismos decorrentes das procedências culturais diversas. Às vezes se fala em Palmares como “república”. Essa palavra, contudo, só é válida se empregada na acepção genérica do Estado, visto que, quanto à estrutura, Palmares foi uma confederação de mocambos; e quanto à forma de governo, foi monarquia absoluta (Ganga Zumba e Zumbi respectivamente) e eletiva.
A sociedade dos quilombolas chegou a agrupar 20.000 pessoas em 27.000 km² e incluiu índios mulatos e até mulheres brancas. A prosperidade resultante não apenas atraiu marginalizados do sistema colonial como também deixou evidente que a posterior estagnação da lavoura açucareira não foi decorrente de uma suposta capacidade deficiente de trabalho do escravo negro mas do caráter antiprodutivo do escravismo, que avilta tanto o homem como seu esforço.
É interessante registrar que a sociedade dos quilombos não foi um retorno espontâneo ao “modus vivendi” africano e sim uma tentativa consciente e lúcida de manter uma sociedade livre em pleno nordeste escravocrata. Veja-se, por exemplo, que, em aspectos importantes como língua e religião, para evitar-se os particularismos locais que poderiam ser nefastos à existência da comunidade como um todo, a linha adotada foi manter a herança lusitana. Assegurou-se a continuação dos costumes africanos só naquilo que não teria força para comprometer a unidade do quilombo: casamento poligâmico, de tipo polínico, escravidão doméstica temporária para negros que chegavam ao quilombo pela via do rapto e não do esforço próprio, etc.
Na parte econômica, o quilombo dos Palmares evoluiu da coleta e do ataque a fazendas e aldeias para uma economia de base coletivista e não-monetária. Cada ex-escravo tratou de trabalhar em sua especialidade: na cama e no milho os que vinham da cidade. Os quilombolas tiveram uma agricultura que chegou a ser diversificada e um artesanato que evidenciou inequívoca habilidade no fabrico de cestas, redes, chapéus, etc. Manteve-se ativo comércio de aldeias vizinhas, a despeito de eventuais conflitos, envolvendo troca de produtos da terra, objetos de cerâmica, peixe e animais de caça por artigos manufaturados, armas de fogo, roupas e instrumentos agrícolas. A rede de interesses mútuos criada por esses intercâmbios, veio a ser, durante algum tempo, de notável valia para a defesa do próprio quilombo.
Conclusões
Os quilombos se distinguiram de qualquer outra modalidade de resistência à escravidão (fuga, suicídio, assassinato, etc.) por dois motivos: amplitude (tentativa de criar uma organização social diferente) e caráter coletivo (não foi apenas um gesto despreparado individual como as outras modalidades). Arthur Ramos, adotando uma interpretação culturalista, viu no quilombo dos Palmares um anseio de retorno à cultura africana, aviltada pelo escravismo, ao passo que Décio Freitas, defendendo uma posição político-ideológica, viu Palmares como uma luta visando objetivamente a liberdade. Essas duas posições possivelmente diferem no aspecto da ênfase, mas se complementam no sentido d fornecer uma compreensão global do fenômeno.
Com efeito, o anseio pela liberdade, o desejo de escapar a uma escravidão que nada teve dos idílios sonhados por Gilberto Freire, explicam amplamente a constituição do quilombo. Uma vez constituído, manifestou-se o sentimento atávico da gente africana, que era a experiência de que dispunham, e uma civilização afro-lusitana surgiu e floresceu nas matas do Alagoas.
Nos aspectos da vida cotidiana, Palmares manteve o legado africano e nativo, mas naqueles setores que poderiam comprometer a unidade e gerar confusão, foram impostos os elementos luso-brasileiros. Em suma, a luta pela liberdade foi a origem e a razão de ser do quilombo dos Palmares enquanto movimento e atitude, ao passo que o aspecto cultural referido por Arthur Ramos entrou como recurso e o ponto de partida de que dispunham os escravos para organizar uma sociedade.
Muito importante veio a ser a presença de tradições africanas depois que surgiu e se estruturou o quilombo. Mas foi o fator sócio-econômico – a luta contra a escravidão – que produziu o nascimento do Estado palmarino. Mais do que uma procedência cultural comum – que absolutamente não existiu – foi a condição de classe que uniu os negros de Palmares.
Fonte: História do Brasil Colonial, Luiz Roberto Lopez, 7ª Ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1993. 101p. (Revisão,4)
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