Maria do Carmo Leal, médica e pesquisadora da Fiocruz, afirma que é preciso diminuir as intervenções desnecessárias no parto
GABRIELA VARELLA
O Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução 2.144/2016, decidiu que o médico só pode realizar o parto cesáreo, a pedido da grávida, a partir da 39ª semana de gestação. A justificativa de garantir a segurança do feto e da gestante, no entanto, é questionada por profissionais. O prazo garante a autonomia da mulher e diminui os riscos? Ou legitima a cesariana eletiva, sem indicação obstétrica?
Juvenal de Andrade, diretor de Defesa e Valorização Profissional da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), acredita que a resolução traz resultados positivos: “A norma vai proteger a saúde da mulher no sentido de respeitar uma autonomia, mas criar condições técnicas”. [Leia mais aqui]. Maria do Carmo Leal, médica e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, critica a prática de cesáreas a pedido, ainda que reconheça que estabelecer a norma é melhor do que a situação anterior, em que o procedimento era feito indiscriminadamente.
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ÉPOCA - A decisão de instituir o limite de 39 semanas ajuda a dar um parâmetro de segurança ou ela legitima a cesárea eletiva?
Maria do Carmo Leal - Nós temos 35% dos bebês brasileiros nascendo com 37 ou 38 semanas de gestação. Nesse intervalo de 37-38, nasce mais de um terço da população de bebês no Brasil, o que é um absurdo. Isso acontece por causa das cesarianas agendadas, principalmente. Não é correto estabelecer idade para tirar um bebê da barriga da mãe em nenhuma circunstância, a não ser que a mãe esteja doente ou o recém-nascido também, em risco. No Brasil, temos índices de cesarianas perto de 60% e no setor privado de 90%. Essa recomendação deveria ser para justificar que todo mundo deve marcar o parto com 39 semanas. Fazer com 39, em vez de fazer com 37 ou 38, é redução de danos. Mas não é o mais indicado.
ÉPOCA - Por que a escolha de 39 semanas?
Maria do Carmo - Estudos mostraram que com 39 semanas os prejuízos para o bebê são reduzidos quando a cesárea é necessária. A ideia foi essa, estabelecer a regra, mas não foi para sacramentar que as mulheres devam fazer uma cesariana com 39 semanas. Porque, além de nascer antes do momento, o bebê pode nascer sem estar pronto para conviver com a vida extrauterina. Pode acabar tendo dificuldade para respirar, problemas para mamar e não ter a imunidade minimamente pronta para conviver com as bactérias que vai encontrar aqui fora.
ÉPOCA - Qual a alternativa para coibir o índice altíssimo de cesáreas no Brasil?
Maria do Carmo - No estudo Nascer no Brasil, vemos que há um componente enorme da responsabilidade do profissional de saúde. Encontramos 29% das mulheres no pós-parto dizendo que, no início do trabalho de parto, preferiam uma cesariana. No entanto, temos 71% das mulheres querendo parto normal. As mulheres querem parto normal, mas o que acontece é que elas não conseguem ter. O maior fator de risco que encontramos para fazer uma cesárea é ter o mesmo médico no pré-natal e no parto. Porque aí tem o componente da conveniência do médico. Nós fazemos uma atenção ao parto muito ruim, diferentemente dos países desenvolvidos, onde as mulheres fazem todas parto normal e têm medo da cesárea. Sabem que quando vão para uma cesárea é porque há uma complicação dela ou do bebê. Em nosso caso, parte das mulheres que querem parto normal, que são a maioria, não é respeitada. Chegam ao final da gravidez, em sua maior parte, com uma cesariana.
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ÉPOCA - A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que apenas 15% dos partos sejam cesáreos. Como chegar a esse índice?
Maria do Carmo - O que se sabe hoje é que acima de 10% não há benefício nem para a mãe nem para o bebê, do ponto de vista populacional. Esse valor de 10% responderia às necessidades de mães e bebês que precisam de uma cesariana no mundo. Para reduzir a cesárea, a primeira coisa seria ter a atenção ao parto normal decente, adequada, baseada nas boas práticas obstétricas, que são, primeiro, empoderar a mulher. Ela ter conhecimento do que é a gravidez, o trabalho de parto, tomar posse do seu corpo e da sua gestação para saber também conduzir o trabalho. Ela precisa ser informada durante o pré-natal pelos profissionais de saúde. Isso está acontecendo de alguma maneira no setor público com o programa da Rede Cegonha e agora há um movimento dentro do setor privado, o projeto chamado Parto Adequado, em que vários hospitais se inscreveram para melhorar a atenção ao parto baseado nas boas práticas.
ÉPOCA - O que seriam as boas práticas obstétricas?
Maria do Carmo - É diminuir a cesárea sem necessidade. Desvincular o médico que faz o pré-natal ao médico que faz o parto, dificultando que ele faça a marcação da cesárea, porque coloca a enfermeira obstétrica como uma possibilidade para atender a mãe até o médico chegar, no trabalho de parto. É preciso mostrar que o parto não é nada pavoroso, que a mulher pode muito bem conduzi-lo. Essa é a mudança de abordagem do parto normal. Também é preciso tirar as intervenções que são feitas sem necessidade: fazer a episiotomia sem necessidade, cesárea sem indicação médica, dar ocitocina para acelerar o trabalho de parto, o que deveria ser feito apenas no período expulsivo. Essas práticas precisam dar lugar ao suporte à mulher.
ÉPOCA - Há uma dificuldade de o médico aceitar uma equipe que inclua profissionais com a enfermeira obstétrica ou a doula?
Maria do Carmo - Aqui no Brasil, porque se faz tanta coisa desnecessária, há tanta intervenção no parto, os médicos não gostam de ser observados, acompanhados. Acho que há também uma falta de experiência de trabalhar em equipe. A equipe dele é o anestesista e os auxiliares, mas é ele quem decide o que fazer com a mulher. A mulher é inerte, e é esse processo que tem de mudar: em vez de ser a figura inerte, ela tem de ser a comandante do seu parto. É um momento singular, e uma grande parte das nossas mulheres passa por esse momento anestesiada. É preciso tirar a centralidade do parto do médico e colocar a centralidade do parto na mulher.
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ÉPOCA - Supondo que uma gestante opte pela cesárea, o médico não deveria expor os riscos desse método cirúrgico?
Maria do Carmo - Os médicos deveriam, em vez de dizer "maravilha, vamos marcar", esclarecer a ela que a cesariana tem muitos riscos, porque é uma cirurgia. Que, enquanto cirurgia, há riscos cirúrgicos na cesariana: anestésicos, de sangramento. Há o risco de cortar mais do que pode. Em caso de não haver necessidade, você está expondo essa mulher a riscos pelos quais ela não precisaria passar. O risco de óbito materno é três vezes maior nas mulheres que fazem cesárea comparado com partos normais. No caso de mulheres saudáveis, é claro.
ÉPOCA - Existe um risco de a mãe ter a autonomia de escolher seu parto sem estar munida de informações sobre os procedimentos?
Maria do Carmo - Há uma discussão sobre se a mulher deve ter autonomia para escolher se ela quer uma cesariana ou um parto vaginal. Em outros países, onde a cesariana não é tão banalizada, isso não é assim. A mulher não escolhe, é o sistema de saúde que o faz. Em torno de 3% das mulheres têm fobia ao parto. É algo raro. A essas mulheres, eles recomendam fazer uma cesariana. Mas, no geral, há um cuidado muito grande, com psicólogos, para que a mulher faça o parto normal. Elas fazem grupos com outras mulheres que já tiveram parto normal, uma série de coisas para tirar esse receio. São explicados os riscos dessa cirurgia. Aqui, não existe isso. Os conceitos dessa autonomia da mulher estão muito deturpados, é uma autonomia desinformada. É uma facilidade para o médico, que resolve tudo de uma vez e faz vários partos.
ÉPOCA - Existe o risco de a mulher não estar, de fato, com 39 semanas de gestação?
Maria do Carmo - O médico pode calcular errado a idade gestacional por não fazer um ultrassom muito precoce, que é quando a gente pode confiar. Quando o médico atualiza a idade gestacional com ultrassons mais recentes, ele pode errar com mais facilidade. Ultrassons tardios erram muito, mesmo quando são bem feitos: os bebês variam de tamanho. É no começo que não há muita variação. Tudo isso é perigoso. Por isso é preciso esperar o bebê.
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