Refeições feitas a partir de doações são oferecidas a moradores de rua.
Iniciativa também ajuda cerca de 500 crianças em comunidades da capital.
Do G1 RS*
Por quase três anos, as calçadas da praça Padre Rambo, no bairro Rubem Berta, Zona Norte de Porto Alegre, acolheram uma cama improvisada, onde Eduardo Flores costumava passar as noites. Quem o vê hoje, distribuindo marmitas pelas avenidas da capital, de aliança na mão esquerda e à espera da segunda filha, demora a acreditar que ele foi um dia morador de rua.
Aos 30 anos, Eduardo está com a vida refeita e cumpre um compromisso semanal: levar alimento às pessoas que ainda fazem de viadutos e marquises o seu lar. "Eu dedico a minha vida a ajudar os moradores de rua", orgulha-se, se recusando a fechar os olhos para uma realidade que conheceu de perto.
Meu único propósito era R$ 5,
eu vivia para próxima pedra"
Eduardo Flores, ex-morador de rua
Num passado não tão distante, a rotina de Eduardo resumia-se em catar latas e garrafas, vender o material nos galpões de reciclagem e comprar droga. Chegou a fumar mais de 30 pedras de crack por dia. “Meu único propósito era R$ 5, eu vivia para a próxima pedra, não tinha perspectiva, não tinha sonho”, lembra. A vida sem uma casa para onde voltar o fez sentir na pele o que é passar frio e fome.
Eduardo abandonou as ruas, mas não quem continua nelas. O projeto, que começou na cozinha de casa há dois anos, meses após deixar a praça onde dormia, adquiriu forma aos poucos. "Ganhei um fogãozinho velho e um botijão de gás e, quando ia fazer um arroz e um feijão para mim, já fazia um pouco a mais", explica.
Lúcio mora na rua e ganhou a primeira refeição do dia (Foto: Joyce Heurich/G1)
De 300 marmitas por mês, Eduardo passou a distribuir 1,5 mil e já conta com a ajuda de outras seis pessoas na preparação e distribuição. A comunidade comprou a ideia e passou a doar alimentos. A colaboração foi tanta, que ele precisou montar uma cozinha industrial exclusivamente para o projeto. Todos os pratos que oferece são preparados a partir das doações.
No refratário, macarrão, arroz e carne. A marmita costuma ser a principal refeição dos sem-teto, não raro a única do dia. O grupo formado por Eduardo também distribui café quentinho, roupas e cobertores - uma ajuda bem recebida por quem atravessa as frias noites gaúchas ao relento.
O trabalho vai além do Centro de Porto Alegre, e contempla 500 também crianças e adolescentes de quatro comunidades da capital. Eles visitam instituições no Beco X, Beco do Buda, Timbaúva e Otávio de Souza, onde realizam o mesmo trabalho que é feito nas ruas.
Leandro, morador de rua, conversa com Eduardo após receber a marmita (Foto: Joyce Heurich/G1)
Uma tarde no viaduto da Duque
Era início da tarde de sexta-feira (10). A circulação de pessoas sob o viaduto da Duque, no Centro da capital, era intensa, mas os colchões e cobertas espalhados pela extensa calçada pareciam estar abandonados. Foi quando Eduardo anunciou: "Quem quer comida? Quem quer café?". Não demorou muito e uma roda de moradores de rua se formou. Olhos curiosos miravam as embalagens de alumínio - queriam saber qual seria o prato do dia.
Abertas imediatamente, assim que foram entregues, as marmitas foram devoradas em poucos minutos. "Muito bom", aprovou Leandro Medeiros, que já conta com a refeição doada por Eduardo há um ano.
capital (Foto: Joyce Heurich/G1)
"A gente vê nele mais que um cara que traz a comida, a gente tem nele um amigo, a gente pode contar com ele", revela. Vestindo luvas, touca e cachecol, Leandro não abriu mão do cobertor. "Tem que se agasalhar o máximo possível", justifica.
Somente neste dia, mais de 50 cobertores foram entregues. Além das doações, Eduardo conversou com os moradores de rua para evitar que a distribuição vire algo mecânico.
A ideia é passar adiante a sua experiêcia e, a partir dela, transformar realidades parecidas. "Hoje, tudo remete à vida que eu levava. Se eu olhar uma garrafa PET no chão, remete. A visão que eles têm é de alguém que se recuperou, e isso enche eles de esperança", conta.
A visão que eles têm é de alguém que se recuperou e isso enche
eles de esperança"
Na ação acompanhada pelo G1, muitos disseram ter vontade de sair da vida que levam, mas alegaram ter dificuldade para achar oportunidades. "Eu já tô cansado dessa vida, eu quero sair, voltar a ser alguém, ter a vida que eu tinha antes de novo, ter um trabalho", comenta João Rafael Ferrão, que aos 30 anos já passou um terço da sua vida na rua.
Quando os sem-teto manifestam esse desejo de mudança, Eduardo os encaminha para um centro de reabilitação. Porém, reconhece que são poucos os que permanecem por lá. A abstinência por causa das drogas costuma os puxar de volta às calçadas. E na posição de ex-morador de rua, ele sabe bem o que é isso.
Quando a caixa de marmitas ficou vazia e a pilha de roupas na sacola baixou, era hora de ir embora. O trabalho de Eduardo estava realizado naquela sexta-feira fria. De estômago cheio, os moradores já haviam dispersado.
Viaduto no Centro de Porto Alegre costuma abrigar moradores de rua todas as noites (Foto: Joyce Heurich/G1)
A vida nas ruas e o recomeço
O vício começou no álcool, ainda na adolescência. Eduardo caiu nas drogas após a morte da avó, com quem tinha passado a morar depois de sair do orfanato. Na época, ele namorava uma menina com quem teve sua primeira filha, Ketlin Vitória, hoje com 9 anos. O vazio deixado pelo falecimento da avó, tentou preencher no crack, o que acabou abalando o seu relacionamento. Expulso de casa pela mulher, foi buscar consolo nas ruas. Só que um vazio ainda maior tomou conta dele.
90% do que eu comia vinha
do lixo"
Nos invernos rigorosos, quando tudo o que tinha era uma bermuda e uma regata para vestir, descobriu o que era passar frio. Eduardo chegou a testemunhar a morte de três amigos por hipotermia. “Eu até hoje não vou saber te dizer o que é o pior na rua, se é o frio ou a fome”, diz ele, que já se sujeitou a comer pão mofado quando o estômago vazio não podia mais esperar.
A disputa com o caminhão de lixo era diária. Eduardo precisava chegar primeiro. Para sobreviver, garimpava nas lixeiras da cidade o que já não servia como refeição para outras famílias. "90% do que eu comia vinha do lixo", afirma.
Ketlin Vitória, 9 anos, é filha de Eduardo
(Foto: Joyce Heurich/G1)
Motivado pela fé, há dois anos e nove meses decidiu que era hora de trocar as ruas frias por um lar. Uma igreja que doava sopas a moradores de rua atraiu Eduardo e, a partir daquele dia, percebeu que a vida podia ser diferente.
Ele passou nove meses dormindo no salão da igreja, período em que seu maior desafio foi viver longe das drogas.
"A abstinência não era maior do que a alegria que eu tava de ter um teto para morar. Eu chorava de alegria ao tomar um café, ao comer um prato de comida", lembra Eduardo, que contou com a ajuda de outras pessoas para conseguir reescrever sua hirtória.
Um amigo da igreja ofereceu a ele um quarto nos fundos de uma oficina, em Porto Alegre, onde ele poderia morar sem pagar nada, provisoriamente. Para lá, carregou seu colchão, o único pertence que tinha. E essa oportunidade transformou seu destino.
A maioria dos móveis que agora preenchem o que antes eram peças vazias vieram de doações, e as roupas que veste, também. Eduardo ainda mora atrás da oficina, mas paga o aluguel da casa e formou uma nova família. Casou-se com Natasha Maciel Flores, 24 anos, que está grávida de sete meses.
"Em setembro chega a Hadassa, é o último nome da rainha Ester, significa a flor mais cheirosa do jardim", explica Eduardo sobre a escolha do nome da filha.
Eduardo transformou sua história de superação em palestras, que são levadas a diversos estados do país. É delas que sobrevive e sai mais motivado a seguir em frente com o projeto que construiu. Depois de dormir por três anos nas ruas, ele voltou a sonhar.
"Meu sonho é continuar ajudando muita gente, constituir cada vez mais a minha família, criar minhas filhas e fazer feliz a minha esposa", almeja.
Eduardo, 30, e Natasha, 24, esperam a bebê Hadassa (Foto: Joyce Heurich/G1)
Interessados em contribuir com doações para o projeto de Eduardo, que ajuda moradores de rua e instituições de quatro comunidades da capital, podem fazer contato pelos números: (51) 9465.8713 ou (51) 9313.8297.
*Joyce Heurich, com supervisão de Alexandra Freitas e Tatiana Lopes.
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