ELI
DINIZ Professora do Instituto de Economia da UFRJ
Resumo: O presente artigo retoma o debate sobre a
reforma do Estado com o objetivo de inserir a discussão sobre este
importante item da pauta das reformas dos anos 90 no âmbito da
teoria democrática contemporânea. Para tanto, enfatiza aspectos
freqüentemente negligenciados pelas análises correntes, tais como o
impacto das diferentes seqüências históricas, as características
do regime político, a inter-relação entre governabilidade
democrática, accountability e responsabilidade pública dos
governantes, quer diante da instância parlamentar, quer diante da
sociedade.
Palavras-chave: globalização; democracia;
reforma do Estado.
No
decorrer dos anos 90, o tema da reforma do Estado adquiriu
centralidade na agenda pública brasileira. A partir da presidência
de Fernando Collor, desencadearam-se as primeiras medidas para
reduzir o Estado e realizar a ruptura com o passado intervencionista,
típico do modelo da industrialização substitutiva de importações
e do desenvolvimentismo dos governos militares de 1964 a 1985. Esse
esforço reformista foi aprofundado no primeiro governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso, que se propôs a tarefa de sepultar a Era
Vargas e superar os entraves representados pela sobrevivência da
antiga ordem. Através da prioridade atribuída às reformas
constitucionais, iniciou-se um processo de desconstrução legal e
institucional, que abriu o caminho para a reestruturação da ordem
econômica e, sobretudo, para a refundação do Estado e da sociedade
de acordo com os novos parâmetros consagrados internacionalmente. A
instauração de um novo modelo econômico centrado no mercado foi
acompanhado de um projeto ambicioso de dar início a uma nova era.
Entretanto, limitada por uma visão restritiva de teor
administrativo, a reforma do Estado do governo Cardoso foi capturada
pela meta do ajuste fiscal, revelando-se incapaz de realizar a
ruptura anunciada.
Desta maneira e após
uma década de experimentos ineficazes, eis que a reforma do Estado
readquire relevância no limiar do novo milênio, configurando-se
como um dos principais desafios do momento presente, dadas as
restrições externas associadas aos desdobramentos do processo de
globalização e as dificuldades para formular e implementar uma nova
estratégia de desenvolvimento para o país. Como conciliar inserção
externa e crescimento econômico? Como garantir o grau necessário de
autonomia decisória nacional para definir e executar formas
alternativas de integração ao sistema internacional? Como
reencontrar o caminho do desenvolvimento?
As reformas realizadas
nos anos 90, notadamente a privatização, a liberalização
comercial e a abertura da economia, tiveram eficácia no desmonte dos
alicerces da antiga ordem, de tal forma que qualquer perspectiva de
retorno ao passado torna-se anacrônica. Entretanto, dentro do atual
modelo, cabem, certamente, diferentes estratégias de
desenvolvimento, algumas frontalmente contrárias às políticas
implementadas nos últimos dez anos. Eis porque as possibilidades de
inovação passam pela política. Torna-se imperativo implantar novas
formas de gestão pública, que permitam a consecução das metas
coletivas e viabilizem formas alternativas de administrar a inserção
na ordem globalizada.
GLOBALIZAÇÃO: A
CENTRALIDADE DA DIMENSÃO POLÍTICA
O fenômeno da
globalização, que vem caracterizando a economia internacional desde
meados da década de 70, ou, como prefere François Chesnais (1996),
a "mundialização do capital", tem sido interpretado de
diferentes maneiras. O termo adquiriu um sem-número de sentidos, que
mais confundem do que esclarecem seu real significado. Entre os
equívocos mais correntes, situa-se a visão da globalização como
um processo exclusivamente econômico. Trata-se de uma simplificação,
pois o processo de globalização não se resume a uma dinâmica
puramente econômica, senão que se trata de um fenômeno
multidimensional, que obedece a decisões de natureza política. Em
outros termos, a economia não se move mecanicamente, independente da
complexa relação de forças políticas que se estruturam em âmbito
internacional, através da qual se tecem os vínculos entre economia
mundial e economias nacionais. Portanto, um dos efeitos da visão
economicista é obscurecer o papel da política. A globalização e a
pressão das agências internacionais exercem, sim, forte influência
na determinação das agendas dos diferentes países, mas não o
fazem de modo mecânico e determinista. As opções das elites
dirigentes nacionais suas
coalizões de apoio político
tiveram e têm um papel importante na escolha das formas de inserção
no sistema internacional e na definição das políticas a serem
implementadas.
A ênfase unilateral
nos aspectos econômicos conduz a um segundo equívoco. Trata-se do
pressuposto de um automatismo cego do mercado globalizado. O processo
estaria submetido a uma lógica férrea, à qual todos os países
deveriam ajustar-se, de modo inescapável e segundo um receituário
único. A abordagem de teor economicista implica, pois, uma visão
determinista, já que a ordem mundial é percebida como submetida a
uma dinâmica incontrolável, de efeitos inexoráveis, o que, no
limite, descartaria a existência de alternativas viáveis.
Efetivamente, se a globalização é apresentada como um processo
inevitável, independente da intervenção humana, adaptar-se de
forma imperativa torna-se a única saída possível.
É interessante
ressaltar que tanto do lado da ótica liberal ortodoxa, representada
pelo Consenso de Washington (Williamson, 1993), quanto numa visão
crítica radical, tal como formulada, para citar apenas um exemplo,
por Viviane Forrester, no livro O horror econômico (1996),
esse traço determinista está presente, já que, em ambos os casos,
a globalização é apresentada como um fenômeno monolítico,
submetido ao império das leis econômicas. Em conseqüência, os
governos nacionais são tratados como objetos passivos de forças que
não podem controlar, sendo, portanto, reduzidos à impotência.
Anula-se a ação política como contrapartida da supervalorização
dos mecanismos econômicos e esvazia-se a responsabilidade dos
governantes pelos erros e acertos das políticas executadas.
Em contraste, e tendo
em vista a complexidade da nova ordem mundial, cabe salientar que a
globalização não está comandada por forças inexoráveis e nem
marcada exclusivamente por relações e processos de natureza
econômica. Está, sobretudo, sujeita a uma lógica política (Diniz,
2000a, cap.1), que por sua vez, tem a ver com relações assimétricas
de poder, que se estabelecem entre as potências em escala mundial,
traduzindo-se pela formação de blocos e instâncias supranacionais
de poder. Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões,
através das quais articulam-se alianças estratégicas, envolvendo
atores externos e internos, destacando-se, entre estes, as grandes
corporações multinacionais, a alta tecnocracia de teor cosmopolita,
as organizações financeiras internacionais, burocratas de alto
nível, entre outras elites estratégicas. Tais relações estão por
trás das escolhas feitas pelos atores, escolhas estas que não são
aleatórias, nem o reflexo de critérios exclusivamente técnicos ou
econômicos, senão que se orientam também por um cálculo político.
Cada vez mais, os
Estados nacionais tornam-se parte de um sistema de poder de teor
supranacional, tornando artificial a rígida contraposição fatores
externos-fatores internos. Eis porque administrar com maior ou menor
autonomia a inserção do país no sistema internacional não requer
apenas capacitação técnica de elites iluminadas, mas depende de
opções políticas em prol da defesa da soberania e do
fortalecimento do poder de negociação dos governos nacionais.
Ademais, conquistar posições favoráveis no jogo de poder
internacional implica uma alta capacidade de gestão do Estado, ao
contrário do que advogam os defensores do Estado mínimo. Como
ressalta Celso Furtado, em seu livro, Brasil, a construção
interrompida (1992:24), "A atrofia dos mecanismos de comando
dos sistemas econômicos nacionais não é outra coisa senão a
prevalência de estruturas de decisões transnacionais, voltadas para
a planetarização dos circuitos de decisões". Cabe
acrescentar, por outro lado, que reverter uma posição subordinada
ou rejeitar a predominância da lógica das empresas transnacionais
na estruturação das atividades econômicas de um país é um ato de
natureza política, requerendo uma ação deliberada capaz de definir
e executar uma nova estratégia nacional.
Entre os equívocos
induzidos pela visão economicista, deve-se mencionar ainda a ênfase
unilateral nos custos econômicos da globalização, perdendo-se de
vista seus custos políticos, tão ou mais relevantes. Tais custos,
nos países desenvolvidos, manifestam-se pela difusão das ideologias
antidemocráticas, do tipo fascista, com forte componente xenófobo,
em reação ao aumento do desemprego, da criminalidade, da incerteza
e do sentimento de impotência em face das crises internacionais. Nas
novas democracias, por outro lado, esse custo político se traduz,
entre outras coisas, e de acordo com alguns autores, pela
generalização de democracias minimalistas. Assim, por exemplo,
Bresser Pereira, José Maravall e Adam Przeworski (1993) referem-se
ao predomínio de um estilo político autocrático na administração
das crises e das reformas econômicas, a partir dos anos 80.
Guillermo O'Donnell (1991) faz referência à difusão, nos países
latino-americanos, das chamadas democracias delegativas,
caracterizadas por alto grau de voluntarismo no exercício da
Presidência da República, interpretando-se a vitória nas urnas
como delegação para decidir discricionariamente. James Malloy
(1993) destaca o predomínio de regimes híbridos, combinando
democracias eleitorais com um estilo autoritário-tecnocrático de
gestão econômica. Aldo Vacs (1994) menciona a tendência à
constituição de democracias restritivas, com baixo grau de
participação política e processos decisórios fechados. Em todos
esses autores, sobressai a preocupação com a debilidade
institucional que dificultaria o aperfeiçoamento da democracia
nestes países.
Finalmente, a
globalização não tem apenas efeitos unívocos na direção da
modernidade, trazendo também conseqüências altamente
desorganizadoras e desestruturadoras. Há um movimento oposto à
integração, que opera no sentido da fragmentação, da segmentação
e da exclusão. Assim, a inserção na economia mundial não pode ser
vista, necessariamente, como um jogo de soma positiva, no qual todos
tenderiam a ganhar. Ao contrário, longe de se ter produzido uma
ordem econômica mundial mais integrada e inclusiva, o que se
observou foi a configuração de um sistema internacional, marcado
por grandes contrastes e polaridades, reproduzindo-se as
desigualdades entre as grandes potências e os países periféricos,
reeditando-se, de forma ainda mais dramática, a exclusão social.
Tais clivagens separam não só países, como também continentes e,
dentro de cada país, instauram um profundo fosso entre as camadas
integradas e os setores excluídos, distância que tende a se
agravar, sob condições do livre jogo das forças de mercado.
A visão economicista
leva ainda ao teor minimalista da agenda pública, pois a ênfase
unilateral nos problemas econômicos situaria estas questões no
centro da agenda governamental, eliminando qualquer meta concorrente,
deslocando qualquer outro objetivo como fator supérfluo, causador de
distúrbios e fonte de distorções. Assim, até mesmo a discussão
em torno de uma escala alternativa de prioridades tende a ser
apresentada como inoportuna, sendo mesmo deslegitimada e
estigmatizada, como expressão de uma visão populista e contrária à
modernidade. Alcançada a estabilização e realizadas as reformas, a
via da modernização estaria assegurada com a retomada do
desenvolvimento.
Por outro lado, a
percepção de que as dimensões política e institucional são
também relevantes e não podem ser ignoradas levou a que se
considerasse a reforma do Estado uma prioridade dos anos 90. A
ruptura com a noção fatalista da globalização, movida pelo
automatismo do mercado, se fez acompanhar da descoberta da falácia
do enfoque estritamente liberal da reforma do Estado, implicando
fundamentalmente corte de gastos, redução do tamanho e das funções
do Estado. Em conseqüência, observou-se a revalorização da
capacidade de ação estatal como um pré-requisito do êxito dos
governos na administração de situações de crise e transição. A
centralidade da reforma do Estado significaria, portanto, a afirmação
de um novo enfoque de maior alcance e abrangência. A ênfase
desloca-se para a busca de alternativas e o reconhecimento de que o
crescimento e a conquista de um novo patamar econômico não se
produzem espontaneamente, senão que são o resultado de políticas
deliberadas, de escolhas feitas por elites dirigentes determinadas a
reverter situações adversas e elevar o nível de bem-estar da
sociedade.
REFORMA DO ESTADO,
REGIME POLÍTICO E DEMOCRACIA: A RELEVÂNCIA DA PERSPECTIVA HISTÓRICA
Além das restrições
externas decorrentes do aprofundamento do processo de globalização,
anteriormente referidas, cabe também levar em conta as
especificidades da evolução histórica de cada país, sobretudo
quando se considera o impacto das diferentes seqüências históricas
na construção da democracia, em cada caso concreto. Tais
considerações remetem ao estudo clássico de Robert Dahl,
Polyarchy: participation and opposition, publicado pela
primeira vez em 1972, em que o autor apresenta as oito garantias
institucionais da poliarquia, quais sejam:
- liberdade de formar e
integrar-se a organizações;
- liberdade de
expressão;
- direito de voto;
- elegibilidade para
cargos políticos;
- direito de líderes
políticos competirem através da votação;
- fontes alternativas
de informação;
- eleições livres e
idôneas;
- existência de
instituições que garantam que as políticas governamentais dependam
de eleições e de outras manifestações de preferência da
população.
Desta forma, a
arquitetura institucional da democracia compreende certos traços
elementares, que são encontrados em todos os exemplos de democracia
política. Entretanto, a amplitude e o grau em que tais condições
institucionais estão presentes, em cada caso considerado, divergem
de maneira expressiva. Ademais, as formas pelas quais o elenco de
direitos, garantias e valores básicos constitutivos das poliarquias
emergem e se institucionalizam variam amplamente. Tais variações
têm relevância para o funcionamento das poliarquias, vale dizer, as
singularidades da evolução histórica têm um impacto na qualidade
da democracia, em termos de suas duas dimensões básicas: os
direitos de oposição e de participação política. A consolidação
institucional ao longo destas duas dimensões
liberalização ou competição política, por um lado, inclusão ou
participação política, por outro
não se dá num mesmo ritmo e não obedece a uma única seqüência.
Algumas trajetórias
são mais favoráveis do que outras para assegurar com sucesso o
trânsito para o regime poliárquico. Dahl (1972: cap.3) aponta dois
caminhos principais: a seqüência I, na qual a liberalização
precede o alargamento da participação, percurso em que uma
hegemonia fechada (baixa competição e baixa participação) aumenta
as oportunidades de contestação pública, transformando-se numa
oligarquia competitiva para, num momento posterior, expandir os graus
de participação política e transformar-se numa poliarquia; e a
seqüência II, na qual a inclusividade precede a liberalização,
percurso que vai de uma hegemonia fechada a uma hegemonia inclusiva e
daí à poliarquia, via institucionalização da competição
política. A primeira via, a mais segura, foi seguida pela Inglaterra
e pela Suécia, enquanto a segunda corresponde ao caminho seguido
pela Alemanha. Já a França enquadrar-se-ia numa terceira
modalidade, caracterizada como um atalho, percurso em que uma
hegemonia fechada é abruptamente transformada em poliarquia por uma
repentina concessão de sufrágio universal e direitos de contestação
pública. Trata-se da via revolucionária, que encerra alto risco de
instabilidade política. Assim, a estabilidade da poliarquia estaria
associada à seqüência que se configurou historicamente na
transição para a democracia. Países que seguiram a seqüência I
(liberalização antecedendo o alargamento da participação) seriam
mais estáveis em relação àqueles que seguiram a II, na qual o
aumento da participação precedeu a institucionalização da
competição política.
Partindo do modelo de
Dahl, Santos (1993: cap.1) introduz algumas qualificações de forma
a desvendar a peculiaridade da evolução latino-americana em face
das experiências européias e anglo-saxônicas. Em primeiro lugar,
como ressalta o autor, à semelhança dos exemplos alemão, francês
e italiano, "o processo latino-americano caracterizou-se pela
incorporação das massas à dinâmica da competição política
antes que se obtivesse estabilidade na institucionalização das
regras dessa mesma competição". Em segundo lugar, e este seria
um traço da democracia latino-americana, a política social foi
utilizada como instrumento de engenharia para universalizar a
participação, em um contexto de fraca institucionalização da
competição política (Santos, 1993:29-30). No caso do Brasil,
verificou-se uma outra especificidade, já que os atores estratégicos
da ordem industrial em formação
aí incluídos o empresariado e os trabalhadores urbanos
adquiriram suas identidades coletivas não através dos partidos
políticos, mas sim pela via do Estado. Além disso, através da
montagem da estrutura corporativa para realizar a articulação
Estado-sociedade, tal como destacado em estudos anteriores (Diniz,
1978 e 1992), este processo de incorporação política seria
subordinado à tutela estatal.
Num outro veio
analítico, O'Donnell (1993, 1998 e 1999) viria também a enfatizar
as peculiaridades da formação histórica das novas democracias, aí
incluindo o Brasil, gerando uma fragilidade institucional que
sobreviveria às tentativas de mudança ao longo do tempo. Entre tais
debilidades, sobressaem a incompletude do processo de constituição
da cidadania, resultando importantes lacunas quanto aos direitos
civis e sociais, o estreitamento dos espaços públicos, além de
sérias deficiências quanto à efetividade da lei. Esta se estende
de forma pronunciadamente irregular sobre o conjunto do território
nacional e sobre as diferentes camadas da população, resultando um
amplo contingente que se situa fora da cobertura legal. Nas novas
democracias, regiões inteiras permanecem à margem do sistema legal
sancionado pelo Estado, não apenas nas áreas rurais, mas também
nas periferias dos centros urbanos. Além disso, no caso de certos
setores discriminados, em todas as regiões, mesmo nas mais
desenvolvidas, a legalidade estatal é também pouco efetiva. Tal
particularidade traduz-se na ampliação das chamadas "áreas
marrons", onde a capacidade de penetração do Estado é muito
baixa ou quase nula (O'Donnell, 1993:129-130).
Nessa mesma linha de
considerações, vale acrescentar uma nova particularidade referida
ao caso brasileiro, qual seja, a coincidência entre momentos
marcantes de reformas institucionais, com destaque para a reforma do
Estado, e a implantação de regimes autoritários (Diniz, 2000a,
cap.2). Com efeito, historicamente, as duas experiências relevantes
de reforma do aparelho de Estado no Brasil, antes da instauração da
chamada Nova República, em 1985, foram efetivadas sob regimes
fortemente autoritários. Esse foi o caso da primeira dessas
reformas, realizada pelo presidente Getúlio Vargas (1930-1945),
quando assumiu o poder após a vitória da Revolução de 1930, à
frente de uma ampla coalizão comprometida com um projeto
modernizante, que culminou com a ditadura estadonovista. A segunda
experiência relevante foi levada a efeito pelo primeiro governo do
ciclo militar (1964-1985), sendo introduzida pelo Decreto-Lei no
200, de 25/02/1967. Em contraste, entre 1945 e 1964, os governos
democráticos que se sucederam no poder não realizaram nenhum
experimento de vulto no tocante à reforma do Estado, preservando-se,
em suas grandes linhas, o padrão anterior.
Nos dois casos
considerados, além do contexto autoritário, o ponto convergente do
esforço reformador está relacionado à dimensão especificamente
administrativa da reforma do Estado, que envolveu questões relativas
ao grau de centralização da máquina burocrática, à hierarquia
entre as várias unidades integrantes do aparelho estatal, à
articulação entre as diversas agências do poder Executivo, à
definição dos órgãos normativos e fiscalizadores ou ainda à
classificação de cargos e carreiras. Não se verificou uma
preocupação com o aperfeiçoamento dos demais poderes e, sobretudo,
com a questão fundamental num regime constitucional, qual seja, a
articulação e o equilíbrio entre os três poderes, atribuindo-se
ao Executivo e às agências administrativas um amplo espectro de
prerrogativas no que concerne à formulação e implementação de
políticas públicas. Aliás, a trajetória do Estado no Brasil
revela a precedência das burocracias militar e civil, que,
historicamente, foram estruturadas e definiram suas identidades
coletivas antes da institucionalização, em âmbito nacional, do
sistema de representação política. Durante a maior parte do
período Republicano, observou-se a tendência à centralidade da
burocracia governamental em face dos partidos e do poder Legislativo.
A prática de
implementação de reformas do Estado sob regimes autoritários teve
conseqüências que não podem ser ignoradas. Em primeiro lugar, os
longos períodos de fechamento do sistema político criaram condições
propícias para a consolidação de uma modalidade de
presidencialismo dotado de amplas prerrogativas, consagrando o
desequilíbrio entre um Executivo sobredimensionado e um Legislativo
crescentemente esvaziado em seus poderes. Exacerbaram-se certas
características do sistema presidencialista, como a outorga
constitucional de poderes legislativos ao chefe do Executivo, o amplo
poder de nomeação do presidente, a autonomia e a centralidade dos
governos estaduais para tecerem alianças e redes de lealdade
políticas. Assim, o isolamento da instância presidencial, seu
fechamento ao escrutínio público, a falta de espaço institucional
para a interferência das forças políticas, a intolerância em face
da dissidência e do conflito, a inoperância dos mecanismos de
controles mútuos, enfim, a falta de freios institucionais ao
arbítrio do Executivo criariam, em diferentes momentos, sérios
obstáculos para a articulação entre os poderes e a comunicação
com a sociedade.
Em segundo lugar,
sobretudo durante os 21 anos de ditadura militar, da qual saímos há
pouco mais de uma década, observou-se o fortalecimento de três
outros traços relativos às formas de ação estatal (Diniz, 1999).
Um deles foi a consolidação do estilo tecnocrático de gestão da
economia, fechado e excludente, que reforçou a concepção acerca da
validade da supremacia da abordagem técnica na formulação das
políticas públicas, abrindo caminho para a ascensão dos
economistas notáveis às instâncias decisórias estratégicas para
a definição dos rumos do capitalismo nacional e sua inserção
externa. A valorização do saber técnico e da racionalidade da
ordem econômica, aspectos considerados intrinsecamente superiores à
racionalidade da instância política, conduziriam a uma visão
asséptica da administração pública, percebida como campo de
competência exclusiva de uma elite acima do questionamento da
sociedade ou da classe política. Paralelamente ao estreitamento do
círculo de decisores formado pela alta tecnocracia, porém, um amplo
segmento da burocracia permaneceria integrado ao sistema de
patronagem e clientelismo (o chamado spoil system),
criando-se, na verdade, a coexistência entre as duas lógicas,
marcadas por relações tensas ou complementares, ao sabor das
circunstâncias políticas. Portanto, o insulamento burocrático,
longe de garantir maior eficácia à máquina estatal, conviveria de
fato com um alto grau de politização da burocracia.
Um outro aspecto
refere-se à primazia dos valores voluntaristas e personalistas,
contribuindo para a formação de uma cultura política
deslegitimadora da ação dos partidos e do Congresso na promoção
do desenvolvimento do país. Retomou-se a tendência, impulsionada
pelo pensamento autoritário dos anos 30, a idealizar o Executivo
enquanto agente das transformações necessárias para a modernização
da sociedade. Assim, a idéia de reforma e de mudança seria
associada ao modelo de Executivo forte, sendo o Legislativo, ao
contrário, percebido como força aliada ao atraso e à defesa de
interesses particularistas e tradicionais. A prevalência de
orientações e práticas cesaristas contribuiria, por sua vez, para
gerar resistências e dificultar a implantação e o funcionamento
efetivo dos mecanismos de cobrança e prestação de contas, no
sentido tanto horizontal quanto vertical, dada a instabilidade das
instituições representativas. Assim, um importante legado do
processo de formação do Estado brasileiro seria o déficit de
accountability que se configurou historicamente.
Finalmente, cabe
mencionar o debilitamento da dimensão legal do Estado pelo alto grau
de instabilidade do marco jurídico, culminando com o reforço da
chamada cultura do casuísmo. Como é sabido, o regime militar
implantado em 1964 preservou a arena parlamentar-partidária, durante
a maior parte do tempo. Simultaneamente, notabilizou-se pelo
desrespeito sistemático à ordem legal constituída, tornando-se
recorrentes os atos arbitrários de mudança brusca das leis, sempre
que esse recurso parecia conveniente aos interesses das forças que
detinham o controle do poder. Assim, por exemplo, no tocante à
legislação eleitoral e partidária, o grau de arbítrio do
Executivo foi levado às últimas conseqüências, através da edição
de sucessivos pacotes eleitorais, alterando as regras do jogo para
reduzir as chances de vitória das forças de oposição ao regime.
Este foi o caso do chamado Pacote de Abril, baixado pelo mesmo
general Ernesto Geisel, que desencadeou o processo de abertura
política e que teve por objetivo preservar o controle dos
governadores na esfera estadual e a maioria do Governo no Congresso.
Cabe considerar, por outro lado, que a estabilidade das regras do
jogo é um dos principais requisitos do processo de consolidação da
democracia, já que a internalização das regras e seu acatamento
pelos atores implicados, bem como a gradual instauração de um
sistema de garantias mútuas, são aspectos essenciais da arquitetura
democrática implantada ao longo do tempo.
REFORMA DO ESTADO E
TEORIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA
A partir de meados dos
anos 90, a reforma do Estado levada a efeito pelo governo Fernando
Henrique Cardoso revelou-se incapaz de realizar a ruptura preconizada
por seus idealizadores, ficando muito aquém das metas estabelecidas
e mostrando-se inócua para atacar, em sua complexidade, os problemas
anteriormente apontados, responsáveis pela crônica ineficácia da
ação estatal. Na origem destas dificuldades podem ser situadas não
apenas falhas de implementação, mas também um erro básico de
diagnóstico, aspecto tratado amplamente em outros trabalhos (Diniz,
1997, 1998 e 2000a, especialmente cap.2), razão pela qual este
artigo concentra-se apenas em alguns pontos considerados essenciais
para o desenvolvimento do argumento aqui proposto.
A hegemonia do
pensamento neoliberal reforçou a primazia do paradigma tecnocrático,
segundo o qual, independentemente do regime político em vigor,
eficiência governamental seria a resultante de um processo de
concentração, centralização e fechamento do processo decisório,
sendo a eficácia de gestão reduzida à noção de insulamento
burocrático. Desta forma, preservar a racionalidade burocrática
implicaria a meta de neutralizar a política e reforçar a autonomia
decisória de elites enclausuradas na cúpula burocrática. Portanto,
o que se observou não foi propriamente o enfraquecimento do Estado,
expressão, aliás, muito pouco elucidativa, mas sim o fortalecimento
desproporcional do Executivo, pela concentração de poder decisório
nesta instância, cada vez mais controlada pela alta tecnocracia,
enfraquecendo os suportes institucionais da democracia.
De acordo com essa
tendência, impôs-se também um dado diagnóstico acerca da crise de
governabilidade que ciclicamente afetou diversos países
latino-americanos, em decorrência não só das oscilações do
mercado internacional, mas também do fracasso dos experimentos de
estabilização econômica levados a efeito, a partir de meados dos
anos 80. A percepção da ineficácia dos governos no tratamento de
problemas críticos, como a inflação e o endividamento externo,
gerou sentimentos de desconfiança e a perda de credibilidade das
autoridades e instituições governamentais.
No caso do Brasil,
desde o fracasso do Plano Cruzado, no governo Sarney, esta crise de
governabilidade foi percebida como efeito direto da sobrecarga da
agenda pública pelo excesso de pressões externas, advindas quer da
esfera social, quer do mundo da política. Sob essa ótica,
ingovernabilidade era expressão de paralisia decisória, isto é, o
governo viu-se incapaz de tomar decisões, em virtude da pressão de
demandas da sociedade. Portanto, o caminho para a reconquista de
condições favoráveis de governabilidade implicava o reforço do
poder discricionário da alta tecnocracia, protegendo-a do jogo
político e reafirmando a centralização e fechamento do processo
decisório (Diniz, 1997).
Rompendo com esta
visão, foi proposto, em trabalhos anteriores, um diagnóstico
alternativo sobre a crise de governabilidade típica do Brasil da
Nova República (Diniz, 2000a e b). Ao contrário de bloqueio da
capacidade de decisão, o que se verificou foi um agudo contraste
entre uma hiperatividade decisória e uma fraca capacidade de
implementação das políticas. Se o Estado, por um lado, acumulou
poderosos instrumentos de decisão, pelo uso indiscriminado das
Medidas Provisórias, introduzidas pela Constituição de 1988, por
outro, viu-se, limitado por precários meios de gestão. Utilizando
as categorias de Michael Mann, pode-se caracterizar esta situação
de ingovernabilidade como expressão de um desequilíbrio entre os
poderes despótico e infra-estrutural do Estado. O primeiro significa
a capacidade de o Estado decidir com independência, mais
precisamente, "o espectro das ações que a elite estatal está
capacitada a empreender sem a negociação de rotina,
institucionalizada, com os grupos da sociedade civil" (Mann,
1986:113). O segundo refere-se à capacidade de o Estado penetrar a
sociedade civil e implementar logisticamente suas decisões por todo
o domínio sob sua jurisdição.
Um dos fatores
responsáveis pelo fraco poder infra-estrutural foi a corrosão da
capacidade de o Estado realizar suas funções básicas e
intransferíveis, como a garantia da ordem e da segurança públicas,
e ainda assegurar condições mínimas de existência para amplas
parcelas da população, localizadas nas faixas mais pobres. Sob o
impacto das crises fiscal e política, e como resultado da primeira
onda de reformas liberais inspiradas no corte de gastos e de pessoal,
aprofundou-se de forma expressiva a incapacidade histórica de o
Estado penetrar no conjunto do território nacional e incluir, em seu
raio de ação, os diferentes segmentos da sociedade, garantindo de
forma universalista o acesso aos serviços públicos essenciais, nas
áreas de saúde, educação e saneamento básico, bem como a
eficácia de seus ordenamentos legais.
Em contraste, o poder
infra-estrutural adquire alta centralidade, num contexto
internacional marcado pelo aprofundamento do processo de globalização
e extensão de seus efeitos em escala mundial. Como demonstrou
Amartya Sen, em seu livro, Sobre ética e economia (1999), o
processo de desenvolvimento fundamenta-se cada vez mais na ampliação
das liberdades sociais, políticas e econômicas. Num sentido pleno,
desenvolvimento não pode, pois, ser medido apenas pelo crescimento
do Produto Nacional Bruto, ou da renda per capita, requerendo a
inclusão de outras variáveis, como o acesso a níveis satisfatórios
de escolaridade e aos serviços de saúde pública, além da elevação
da expectativa de vida da população. Esta noção inspirou a
reformulação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da
Organização das Nações Unidas (ONU), segundo o qual o Brasil
ocupa atualmente a 79a posição em termos
internacionais, situando-se no bloco dos países de médio
desenvolvimento.
Uma ruptura com o
enfoque tecnocrático-reducionista implica, portanto, pensar a
reforma do Estado a partir do arcabouço teórico-conceitual
fornecido pelas formulações da teoria democrática contemporânea,
segundo a qual as eleições são instrumentos necessários, mas não
suficientes para garantir o controle dos governantes pelos governados
(Manin, Przeworski e Stokes, 1999). Em conseqüência, a ênfase
desloca-se para a necessidade de criar e fortalecer novos arranjos
institucionais que possibilitem o funcionamento da democracia nos
intervalos entre as eleições.
Desse ponto de vista,
adquirem prioridade os mecanismos e procedimentos garantidores da
responsabilização dos governantes em relação aos governados,
notadamente os aspectos ligados à dimensão de accountability,
sobretudo em sua forma horizontal, à relação entre os poderes,
reduzindo os problemas de assimetria pelo uso exacerbado das Medidas
Provisórias, ao reforço do poder infra-estrutural do Estado e à
expansão dos direitos de cidadania, além da reestruturação dos
mecanismos de articulação entre o Estado e a sociedade. Ainda que
as lacunas apontadas tenham raízes históricas, tais traços foram
exacerbados ao longo da última década. O estilo tecnocrático de
gestão e as amplas prerrogativas do Executivo fortaleceram o poder
de burocracias insuladas do escrutínio público, dificultando
senão inviabilizando os
mecanismos rotineiros de controle externo. Desta forma, a baixa
efetividade dos instrumentos de responsabilização pública dos
governantes e o excesso de discricionariedade da alta burocracia
estatal reforçam-se mutuamente, gerando um vazio quanto às
modalidades usuais de supervisão entre os poderes e de controle
social por parte do público em geral.
Em contraste com os
requisitos de uma visão abrangente e multidimensional da reforma do
Estado capaz de ultrapassar os estreitos limites de uma concepção
minimalista de democracia, a proposta do Mare não alcançou o
objetivo de eliminar os pontos de estrangulamento da administração
pública brasileira, bem como os vícios do passado. A orientação
básica do governo esteve voltada para as questões relativas à
crise fiscal e à preservação da austeridade orçamentária. Em
conseqüência, a reforma administrativa foi efetivamente contida
pelas metas do ajuste fiscal, conduzido de forma inflexível pelo
Ministério da Fazenda. Além disso, a questão da assimetria
Executivo-Legislativo foi não só desconsiderada, como reforçada,
dada a estratégia de implementação adotada pelo governo.
Paralelamente à lenta tramitação da reforma no Congresso, o
Executivo lançaria mão sistematicamente do instituto das Medidas
Provisórias para introduzir inúmeras modificações na estrutura
administrativa, alcançando um total de 18 MPs, que seriam ademais
continuamente reeditadas, de acordo com uma prática recorrente do
governo.
Além da crise fiscal,
o diagnóstico do governo acerca da crise do Estado apontaria o
anacronismo do modelo burocrático weberiano, defendendo, através da
introdução de um novo modelo
o da administração gerencial
uma ruptura com aquele tipo de organização burocrática. Em
contraste, no Brasil nunca houve uma burocracia propriamente
weberiana. A reforma implantada por Getúlio Vargas, nos anos 30, não
teve êxito no sentido de garantir a vigência da burocracia racional
legal. Desde o início, teve-se
um sistema híbrido, marcado pela coexistência dos princípios
universalistas e meritocráticos, com as práticas clientelistas,
tradicionalmente presentes no padrão de expansão da burocracia
brasileira.
Os cargos de nomeação
política sempre foram bastante numerosos, quando considerados os
padrões internacionais. Assim, segundo Schneider, em comparação
com a maioria dos chefes de Estado contemporâneos, o presidente do
Brasil detinha, nos anos 80, um amplo poder de nomeação,
ultrapassando o montante de 50.000 funcionários, em contraste com o
Japão, por exemplo, onde os poderes de nomeação direta na
burocracia limitar-se-iam praticamente aos ministros (Schneider,
1994:28). Em pesquisa relativa ao período
nacional-desenvolvimentista, Barbara Geddes (1990), analisando o
governo Kubistchek, refere-se a 7.000 nomeações clientelistas
feitas pelo presidente Juscelino, apesar de publicamente
manifestar-se a favor do sistema meritocrático e de ter implantado
as chamadas ilhas de excelência no interior da burocracia
governamental, no setor responsável pela execução do Programa de
Metas do governo os Grupos
Executivos das indústrias automobilística e naval, entre outras. De
acordo com dados do Mare
Ministério da Administração e Reforma do Estado, na segunda metade
dos anos 90, haveria cerca de 17.200 cargos em comissão.
A ruptura com esse
padrão, vale ressaltar, implicaria a ênfase na melhoria da
qualidade da burocracia, no reforço do sistema de mérito, na
implantação de um sistema de incentivos para a ascensão na
carreira, na valorização do funcionalismo, na recuperação do
prestígio do servidor público, num padrão endógeno de
recrutamento para os cargos de mais alto nível, o que esbarra nas
restrições decorrentes da prioridade atribuída ao ajuste fiscal.
Por último, quanto ao aspecto conceitual, cabe observar que
burocracia racional-legal e padrão gerencial são categorias
distintas, referidas a estatutos teóricos diversos: a primeira
expressando uma certa modalidade de relações de dominação; e o
segundo representando um estilo específico de gestão. A implantação
de um padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e
procedimentos, não elimina a possibilidade da persistência ou mesmo
do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento do
Executivo com a estrutura parlamentar-partidária.
Neste sentido, mais uma
vez, verificou-se a sobrevivência de um sistema híbrido, desafiando
a meta de uma transformação drástica do legado histórico. Em
síntese, a alta discricionariedade da autoridade presidencial e o
amplo poder de decreto de que dispõe constituem a outra face do
controle e cooptação dos partidos e dos congressistas pelo chefe do
poder Executivo, por intermédio do recurso generalizado às práticas
clientelistas para obter apoio aos seus projetos. O loteamento dos
principais cargos da administração pública, por sua vez, contribui
para a deterioração da capacidade de implementação das políticas
governamentais. A criação das chamadas ilhas de excelência pelo
fortalecimento do insulamento burocrático, buscando ampliar os graus
de autonomia do Executivo, reproduz os elementos centrais desse
sistema, num círculo vicioso de efeitos perversos. Este representa
um ponto de continuidade que vem desafiando as experiências de
reforma do Estado até o momento empreendidas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Repensar a reforma do
Estado requer uma ruptura com o paradigma ainda dominante nos estudos
desta área. Para tanto, impõe-se considerar os aportes da teoria
democrática contemporânea. Não basta mais e mais concentração do
poder técnico. É preciso levar em conta a dimensão política da
reforma do Estado e não apenas seus aspectos técnicos,
administrativos, fiscais e financeiros. A ênfase na política, por
sua vez, implica obter aquiescência às diretrizes estatais,
produzir o acatamento aos ordenamentos e prescrições tanto
administrativas como legais. Requer, enfim, o fortalecimento das
conexões do Estado com a sociedade e com as instituições
representativas, expandindo também os mecanismos de accountability,
vale dizer, os procedimentos de cobrança e de prestação de contas,
os meios de controle externo, a transparência e a publicização dos
atos do governo.
Nesse sentido, podem
ser ressaltadas as perspectivas que preconizam novos estilos de
gestão pública, revertendo o isolamento e o confinamento
burocrático. Esta nova perspectiva implica estreitar os vínculos
com a política, reforçar os instrumentos de responsabilização da
administração pública por controle parlamentar, dar mais força à
sociedade civil, sem enfraquecer o poder de coordenação do Estado,
e diversificar os espaços de negociação e as táticas de alianças
envolvendo diferentes atores, associando o aumento da participação
com o reforço das instituições representativas. As duas formas de
responsabilização pública, por controle parlamentar e pela
participação social, longe de serem incompatíveis, reforçam-se
mutuamente, como ressalta a teoria democrática contemporânea
(Anastásia, 2000).
À luz desta concepção
ampla de reforma do Estado, governabilidade e governança devem ser
usados como conceitos complementares. Trata-se de aspectos distintos,
porém interligados da ação estatal. Governabilidade refere-se às
condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício
do poder numa dada sociedade. Nesse sentido, as variações dos graus
de governabilidade sofrem o impacto das características gerais do
sistema político, como a forma de governo (se parlamentarista ou
presidencialista), as relações entre os poderes (maior ou menor
assimetria entre Executivo e Legislativo), os sistemas partidários
(pluripartidarismo ou bipartidarismo), o sistema de intermediação
de interesses (corporativista ou pluralista), entre outras
características. Não há, porém, fórmulas mágicas para assegurar
níveis ótimos de governabilidade. Governança, por outro lado, na
acepção aqui utilizada, diz respeito à capacidade de ação
estatal na implementação das políticas e na consecução das metas
coletivas. Implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução
e de administração dos conflitos de interesses, fortalecendo os
mecanismos que garantam a responsabilização pública dos
governantes. Governança refere-se, enfim, à capacidade de inserção
do Estado na sociedade, rompendo com a tradição de governo fechado
e enclausurado na alta burocracia governamental.
Neste contexto, várias
experiências inovadoras de governança urbana no Brasil, ao longo
das duas últimas décadas, revelaram um alto grau de eficiência na
desprivatização do poder público, na democratização do processo
decisório ou ainda na reversão de práticas clientelistas. No mundo
inteiro, as cidades adquirem alta centralidade na vida política,
econômica, social e cultural de seus respectivos países. Os
governos locais, em face das condições de escassez de recursos, do
aumento do desemprego e da queda da arrecadação, em conseqüência
das políticas liberais, formularam novas estratégias e tomaram a
iniciativa de atrair investimentos, gerar empregos e renovar a base
produtiva das cidades. Em 1986, ocorreu, em Rotterdam, a Conferência
das Cidades Européias, que definiu as cidades como motores do
desenvolvimento econômico. Em 1989, em Barcelona, uma nova
conferência reuniu as 50 maiores cidades da Europa num esforço de
definir novos parâmetros de ação.
No Brasil, onde as
carências acumularam-se ao longo do tempo e agravaram-se nas duas
últimas décadas, a ação inovadora de várias prefeituras tem
contribuído para a melhoria de inúmeros indicadores. Entre as áreas
priorizadas, destacam-se os serviços de saúde, saneamento básico e
infra-estrutura urbana, como revelam as experiências de Diadema,
Betim e Santos, entre outras. Como é sabido, a simples melhoria dos
serviços básicos (água, esgoto e eletrificação) reduz
significativamente a precariedade das condições de vida das
populações mais pobres, ainda que não haja melhoria da renda. Cabe
ainda destacar os programas de renda mínima e bolsa-escola, em
Vitória, Belo Horizonte e Brasília, as políticas de
desenvolvimento econômico, como o Plano Estratégico da Cidade de
Vitória, e certamente as experiências de Orçamento Participativo,
de Porto Alegre e Belo Horizonte.
Qual o alcance e a
viabilidade das experiências de governança urbana? Não há dúvida
de que a participação espontânea da sociedade não garante por si
só o sucesso deste estilo de gestão. Para evitar distorções,
algumas condições devem ser cumpridas. Do ponto de vista da
sociedade, é preciso considerar seu grau de organização, a
disposição para participar (capital social), a densidade e a
qualidade da representação, isto é, o grau de organização dos
interesses representados e a legitimidade e a abrangência da
representação e, finalmente, o grau de horizontalização das
relações. Do ponto de vista do governo local, o grau de
descentralização administrativa, a autonomia das diversas esferas
de poder, a articulação entre elas e a capacidade de comando e de
coordenação do Estado são alguns dos fatores que favorecem a
eficácia deste padrão de gestão pública (Valladares e Coelho,
1995; Spink e Clemente, 1997; Melo, 1999).
NOTAS
E-mail da autora:
ediniz@unisys.com.br
Este artigo baseia-se na aula inaugural proferida em 5 de abril de 2001, por ocasião da abertura das atividades do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço aos coordenadores e professores do Programa o honroso convite.
Este artigo baseia-se na aula inaugural proferida em 5 de abril de 2001, por ocasião da abertura das atividades do Programa de Pós-Graduação de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço aos coordenadores e professores do Programa o honroso convite.
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