A
questão mais relevante é indagar como sair desse quadro'
por
Sérgio
Fernando
Moro
04/10/2015 8:52
A
corrupção faz parte da condição humana. Isso não é um álibi,
mas uma constatação. Sempre haverá quem, independentemente das
circunstâncias, ceda à tentação do crime.
Outro
fenômeno é a corrupção sistêmica, na qual o pagamento de propina
torna-se regra nas transações entre o público e o privado. Isso
não significa que todos são corruptos ou que todas as interações
entre agentes privados e públicos envolvam sempre propina. Mas, na
corrupção sistêmica, o pagamento da propina, embora não um
imperativo absoluto,torna-se um compromisso endêmico, a regra do
jogo, uma obrigação consentida entre os participantes, normalmente
refletida no pagamento de percentuais fixos de comissões sobre
contratos públicos.
OS
CUSTOS
SÃO
GIGANTESCOS
A
economia perde eficiência. Além dos custos óbvios da propina,
normalmente inseridos nos contratos públicos, perde-se a
racionalidade na gestão pública, pois a apropriação dos valores
passa a guiar as decisões do administrador público, não mais tendo
apenas por objetivo a ótima alocação dos recursos públicos.
Talvez seja ela a real motivação para investimentos públicos que
parecem fazer pouco sentido à luz da racionalidade econômica ou
para a extraordinária elevação do tempo e dos custos necessários
para ultimação de qualquer obra pública.
Mais
do que isso, gera a progressiva perda de confiança da população no
estado do direito, na aplicação geral e imparcial da lei e na
própria democracia. A ideia básica da democracia em um estado de
direito é a de que todos são iguais e livres perante a lei e que,
como consequência, as regras legais serão aplicadas a todos,
governantes e governados, independentemente de renda ou estrato
social. Se as regras não valem para todos, se há aqueles acima das
regras ou aqueles que podem trapacear para obter vantagens no domínio
econômico ou político, mina-se a crença de que vivemos em um
governo de leis e não de homens. O desprezo disseminado à lei é
ainda um convite à desobediência, pois, se parte não segue as
regras e obtém vantagens, não há motivação para os demais
segui-las.
Pior
de tudo, a corrupção sistêmica impacta o sentimento de autoestima
de um povo. Um povo inteiro que paga propina é um povo sem
dignidade.
Pode-se
perquirir quando o problema começou, mas a questão mais relevante é
indagar como sair desse quadro.
Há
uma tendência de responsabilização exclusiva do poder público,
como se a corrupção envolvesse apenas quem recebe e não quem paga.
A iniciativa privada tem um papel relevante no combate à corrupção.
Cite-se o empresário italiano Libero Grassi. Em ato heroico, no
começo da década de 90 na Sicília, denunciou publicamente a
extorsão mafiosa, recusando-se a pagar propina. Ficou isolado e
pagou com a vida, mas seu exemplo fez florescer associações como o
Addiopizzo, que reúne atualmente centenas de empresários
palermitanos que se recusam a ceder à extorsão. Não se pretende
que empresários daqui paguem tão alto preço para tornarem-se
exemplos, mas, por vezes, poderão se surpreender como a negativa e a
comunicação às autoridades de prevenção, que podem mostrar-se
eficazes.
Mas
o poder público tem igualmente um papel relevante. As regras de
prevenção e repressão à corrupção já existem. É preciso
vontade para torná-las efetivas. Se a Justiça criminal tratasse a
corrupção com um terço da severidade com que lida com o tráfico
de drogas, já haveria uma grande diferença. Em parte, a
inefetividade geral da lei contra a corrupção e contra figuras
poderosas é um problema de interpretação e não de falta de
regras. O exemplo do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação
Penal 470 deve ser um farol a ser considerado por todos os juízes.
Dizer
que as regras existem não significa que não é preciso melhorá-las.
O
que mais assusta, em um quadro de naturalização da propina, é a
inércia de iniciativas para a alteração das regras legais que
geram as brechas para a impunidade. O processo penal deve servir para
absolver o inocente, mas também para condenar o culpado e, quando
isso ocorrer, para efetivamente puni-lo, independentemente do quanto
seja poderoso.
Não
é o que ocorre, em regra, nos processos judiciais brasileiros.
Reclama-se, é certo, de um excesso de punição diante de uma
população carcerária significativa, mas os números não devem
iludir, pois não estão lá os criminosos poderosos. Para estes, o
sistema de Justiça criminal é extremamente ineficiente. A
investigação é difícil, é certo, para estes crimes, mas o mais
grave são os labirintos arcanos de um processo judicial que, a
pretexto de neutralidade, gera morosidade, prescrição e impunidade.
Um
processo sem fim não garante Justiça. Modestamente, a Associação
dos Juízes Federais do Brasil apresentou sugestão ao Congresso
Nacional, o projeto de lei do Senado 402/2015, que visa eliminar uma
dessas grandes brechas, propiciando que, após uma condenação
criminal, em segunda instância, por um Tribunal de Apelação, possa
operar de pronto a prisão para crimes graves e independentemente de
novos recursos. Críticos do projeto apressaram-se em afirmar que ele
viola a presunção de inocência, que exigiria o julgamento do
último recurso, ainda que infinito ou protelatório.
Realisticamente, porém, a presunção de inocência exige que a
culpa seja provada acima de qualquer dúvida razoável, e o projeto
em nada altera esse quadro. Não exige, como exemplificam os Estados
Unidos e a França, países nos quais a prisão se opera como regra a
partir de um primeiro julgamento e que constituem os berços
históricos da presunção de inocência recursos infinitos ou
processos sem fim. O projeto não retira poderes dos Tribunais
Superiores que, diante de recursos plausíveis, ainda poderão
suspender a condenação. Os únicos prejudicados são os poderes da
inércia, da omissão e da impunidade.
Mas
há alternativas. Em sentido similar, existe a proposta de emenda
constitucional 15/2011, originária de sugestão do ministro Cezar
Peluso, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal. O Ministério
Público Federal apresentou dez propostas contra a corrupção que
deveriam ser avaliadas pelo governo e pelo Congresso, assim como os
projetos citados, com a seriedade que a hora requer.
O
fato é que a corrupção sistêmica não vai ceder facilmente. Deve
ser encarada da forma apropriada, não como um fato da natureza, mas
como um mal a ser combatido por todos. Os tempos atuais oferecem uma
oportunidade de mudança, o que exige a adoção, pela iniciativa
privada e pela sociedade civil organizada, de uma posição de
repúdio à propina, e, pelo Poder Público, de iniciativas concretas
e reais, algum ativismo é bem-vindo, para a reforma e o
fortalecimento de nossas instituições contra a corrupção. Milhões
já foram às ruas protestar contra a corrupção, mas não surgiram
respostas institucionais relevantes. O tempo está passando e o
momento, em parte, está sendo perdido.
Sérgio
Fernando Moro é juiz federal
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