sábado, 21 de novembro de 2015

Abaixo a vacina!, por Voltaire Schilling*

 “Houve de tudo ontem. Tiros, gritos, vaias, interrupção de trânsito, estabelecimentos e casas de espetáculos fechadas, bondes assaltados e bondes queimados, lampiões quebrados a pedrada, árvores derrubadas , edifícios públicos e particulares deteriorados.” - Gazeta de Notícias, 14 de novembro de 1904

Se bem que o Rio de Janeiro daqueles tempos não tivesse nenhum buraco negro como em Calcutá, um semidouro abrasante de homens brancos, a capital do império em termos de higiene e saúde pública era um pavor. A paisagem sim, belíssima, de extasiar, mas as condições de vida para quem vinha da Europa eram de assustar. O Conde Gobineau, embaixador francês no Brasil e amigo do imperador dom Pedro II, mal desembarcou em 1869, foi derrubado por uma febre que o prostrou por seis meses. Deixou direto que o Rio de Janeiro era um “deserto povoado por malandros” e passou boa parte do tempo alarmado em contrair algo mortal. Podia ter sido eleito por qualquer das desgraças tropicais: a peste bubônica, a febre amarela ou a varíola, entre tantas mais, visto que a cidade acolhia todas as pandemias existentes. O Rio era um hospital a céu aberto.
Salvando-se o aprazível bairro do Botafogo, morada do Conselheiro Aires de Machado de Assis, e o Flamengo, o centro da cidade era medonho. Ali, da beira do cais estendendo-se até os morros da Saúde e da Providência, concentrava-se a república dos cortiços. Um mar de casebres, colados uns aos outros, que parecia não ter fim. Com a abolição de 1888, a situação urbana piora. Milhares de ex-escravos, largados sem nada do eito, deram com os costados por lá. Viviam ao deus-dará.
O ponto determinante que levou as autoridades republicanas a pôr um fim naquilo, naquele matadouro invisível, foi a morte em massa de marinheiros italianos. Em 1895, 240 tripulantes da fragata Lombardia, em visita à cidade, caíram atacados pela febre amarela. Em uma semana, 144 deles morreram, inclusive o comandante. Como atrair imigrantes para virem para o Brasil com aquilo? Precisou-se esperar pela Presidência de Rodrigues Alves, o “soneca”, que, negando o apelido, resolveu detonar.
Em 1903, ele deu carta branca ao engenheiro Pereira Passos para desmantelar os pardieiros e construir uma Paris tropical no lugar deles, ao tempo em que indicou o doutor
Oswaldo Cruz, vindo do Instituto Pasteur, da França, para acabar com os “microassassinos”, geradores das doenças (não era o calor, nem a maresia que provocava as febres e pestes, mas sim os insetos e os ratos).
Com a picareta e a dinamite do “bota-abaixo”, somadas à fumaça contra os pernilongos, esperava-se que a cidade deixasse de ser o que Olavo Bilac chamou de “cemitério dos vivos”.. Naturalmente que a população pobre, aquela imensa plebe sem eira nem beira que habitava o miolo da capital, não gostou nada daquilo. Explodiram quando deu-se a aprovação da obrigatoriedade da vacina contra a varíola, em 31 de outubro de 1904.
Os ajuntamentos e os tumultos se multiplicaram a partir do dia 10 de novembro. Multidões furiosas reuniram-se no Largo São Francisco para protestar. A obrigatoriedade, entendiam eles, era uma monstruosidade. Uniram-se a eles os poucos positivistas, denunciando o “despotismo sanitário” do doutor Oswaldo. Num zás os bondes começaram a ser atacados. As lojas do centro foram varridas a pedradas. Nas ruas, colchões ardiam em meio a latas viradas. Escaramuças de desordeiros contra a polícia se multiplicavam por todos os lados. Barricadas surgiram do nada. O grito de guerra deles era “Abaixo a vacina!”
Outras vítimas foram os lampiões. Do desembarcadouro da cidade até Copacabana (despovoada na época), não sobrou nenhum para alumiar as noites. Cada parte da turbamulta entrou na batalha a seu modo e gosto. Os trabalhadores alegaram que defendiam suas famílias da intromissão indecorosa dos vacinadores, a choldra queixava-se do abandono e dos maus tratos, e os estudantes por amor à baderna. Até a rapaziada do Colégio Militar, então na Praia Vermelha, pegou em armas contra o governo. Por cinco dias, do dia 10 ao dia 15 de novembro, deu-se um pandemônio no Rio de Janeiro.
O governo reagiu trazendo tropas de fora, de Niterói e até de São João del Rei, regimentos aptos a disparar nas turbas. Obuses foram lançados sobre o morro da Gamboa e da Saúde (sinta-se a ironia do nome). Somou-se quase mil presos, 30 mortos e uns 200 feridos. Assim, ao troar das canhonadas, a “metrópole dos desocupados”, em mãos da “matula desenfreada”, como Bilac chamou a cidade revoltada, voltou à calma no dia 15 de novembro de 1904, justo quando a república completava 15 anos. Revogou-se a obrigatoriedade no dia seguinte. Todavia, a vacinação “pegou”. Oswaldo Cruz, que fora moralmente linchado, apelidado de o “Czar dos mosquitos”, terminou por ser reconhecido e Pereira Passos, o “bota-abaixo”, levou adiante seu sonho de estender bulevares parisienses em meio à miséria carioca. Viabilizaram o Rio de Janeiro de hoje.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, página 17 de 21 de novembro de 2004.



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