domingo, 22 de novembro de 2015

A PEC dos Cartórios, por Guilherme Pinho Machado

Uma das maiores conquistas da Constituição de 1988 foi a consagração do princípio segundo o qual o acesso a cargos, empregos e funções públicas deve se dar por meio do concurso público. Há exceções, claro, como nos casos dos mandatos eletivos e cargos de confiança, nos quais se justificam, mesmo que com relação aos últimos existam cada vez mais limitações, como no caso da proibição ao nepotismo.
A regra é acima de tudo moralizadora, é acima de tudo moralizadora, uma vez que permite o acesso dos que efetivamente se preparam e demonstram capacidade para exercer as tarefas, aprovados que foram em certame público. Mais do que isso, o concurso público preserva a impessoalidade administrativa, afastando os interesses pessoais dos governantes, a quem não cabe escolher quem exercerá tais funções, limitando, assim, tanto os apadrinhamentos quanto as conhecidas perseguições.
A mesma Constituição, de forma expressa, dispôs que as funções de notário e de registrador também sejam preenchidas por concurso público. Acabou o legislador com a antiga prática, na qual cartórios eram transmitidos de pais para filhos, ou para cônjuges, mantendo-se uma mesma família por décadas responsável pela prestação de um serviço público ao cidadão.
No entanto, de forma surpreendente, e em absoluto retrocesso, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar em primeiro turno a PEC 471, emenda constitucional em efetiva como “donos” dos cartórios os atuais interinos. A chamada “PEC dos Cartórios” vem desde o ano de 2005 entrando e saindo da pauta do Congresso Nacional, mas exatamente agora, quando vários concursos estaduais estão sendo realizados, muitos já encerrados, surge a aprovação deste verdadeiro “trem da alegria”.
Afirmam alguns que a emenda visa preservar os donos de pequenos cartórios, uma vez que muitos concursados são aprovados e não querem residir nas pequenas cidades, o que levaria ao fechamento das serventias. A alegação é falsa, e para tanto basta dizer que se um concursado não quer assumir determinado cartório, este permanece com o interino. O oficial de cartório deve ser um profissional do Direito que demonstre a efetiva qualificação para realizar as tarefas que são delegadas pelo Estado. De forma alguma se quer proibir que esses “herdeiros” exerçam tais funções. Para eles estão também abertos os concursos públicos, podendo concorrer de forma igual pelas vagas com os demais brasileiros, vagas estas a serem conquistadas por seu mérito, não por seus laços de sangue.
A emenda não só é inconstitucional, ela é imoral. Nossos deputados federais prestarão um grande serviço à população se não aprovarem a PEC 471 em segundo turno. Não só irão preservar uma conquista histórica do povo brasileiro, como demonstrar que nessa questão não reside nenhum outro interesse que não seja o público.


Juiz federal e professor de Direito Administrativo




Fonte: Correio do Povo, página 2 da edição de 28 de setembro de 2015.


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