Paulo Humberto Porto Borges*
“Iluminados pela aurora magnífica
percebíamos, aos nossos pés, os nossos soldados correndo pelo
campo, para o local do combate, mais longe, os índios Terena e
Gauicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega como
bravos auxiliares carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos
tomados aos paraguaios.”
Ainda
hoje, cento e vinte oito anos depois do
principal conflito envolvendo países latino-americanos, a Guerra do
Paraguai (1864-1870) permanece apresentando diferentes interpretações
e questionamentos.
A
Grande Guerra, como é
conhecida no Paraguai, mobilizou aproximadamente 135 mil soldados
brasileiros e durou cerca de seis anos. Foi a maior intervenção
militar brasileira em solo estrangeiro.
Após
a guerra, da qual participaram
também Argentina e Uruguai, compondo junto com o Brasil a chamada
Tríplice Aliança, o Paraguai, derrotado, foi dividido e parte do
seu território anexado pelos países vencedores.
Para
o Paraguai as consequências foram drásticas, devido
ao mortício ocasionado pelo conflito, cerca de 75% da população
masculina desapareceu e o país exauriu-se economicamente. O governo
paraguaio abriu mão de extensas propriedades rurais que foram
prontamente adquiridas por especuladores argentinos, ingleses e
norte-americanos, ocasionando a expulsão de milhares de pequenos
agricultores, inclusive diversos aldeamentos Guarani.
Porém,
apesar da violência e a
importância deste acontecimento na historiografia latino-americana,
pouco se sabe do impacto desta guerra junto as populações indígenas
envolvidas no conflito, como os Terena e os Kadiwéu do Mato Grosso
do Sul e parte dos chamados Guarani “paraguaios”, que se viram
forçados a lutarem por seus respectivos governos nacionais. Assim
como em relação as diversas comunidades indígenas Guarani do
Paraguai que, mesmo não pertencendo ao exército de Solano Lopez,
foram alcançadas nos recônditos na floresta paraguaia pelas
consequências da Grande Guerra.
Para
estas comunidades, que até
então haviam logrado manter-se relativamente a salvo da sociedade
não-índia – refugiados nas selvas do Paraguai e da Argentina –
a Guerra do Paraguai terminou por desempenhar um triste papel
civilizatório ao atravessar, ocupar e destruir o último nicho
tradicional de diversos grupos Guarani. Abrindo caminho para a total
desintrusão destas terras em favor do grande capital.
“Durante las centurias de la
colonia española y hasta la guerra del 70 essas vastas regiones eram
paraguayas más por designación nominal que por ocupación real;
después de la guerra de 70, los dueños del territorio, com sus
inmensos montes y yerbales, eran unas pocas compañias extranjeras
que implantaron un régimen feudal de un Estado dentro del Estado.”
De
forma que, em 1870, existiam
duas realidades indígenas distintas em relação a Guerra do
Paraguai, o indígena combatente aliciado pelo estado, como os povos
Terena, Kadiwéu e Guarani, e o indígena alcançado pela guerra del
70, como no caso de diversos grupos indígenas localizadas no
interior do Paraguai. Todos atingidos e transformados por esta mesma
guerra, mas de maneiras absolutamente distintas.
Passados
quase um século e meio, este
conflito continua revelando-se polêmico e suscitando questões. E,
neste momento que a historiografia latino-americana, impulsionada
pelos acordos econômicos do MERCOSUL, se debruça sobre o que foi,
sem dúvida, a mais prolongada – com exceção da Guerra da Crimeia
– e a mais cruenta guerra internacional já ocorrida no período
entre 1815 e 1914, é necessário ouvir e registrar algumas vozes que
ainda não foram ouvidas pela historiografia oficial a respeito deste
conflito, vozes que permanecem audíveis apenas na tradição oral e
no imaginário de seus respectivos grupos. Como no relato do
professor Guarani Pedro Mirim explicando o 'por quê' de sua família
ter sobrevivido a guerra:
“Ymãxerayi oexa raka'e jurua guery
joguero'a jave. Jogue raa ma taperupi vy oexa ma jurua kuery ou ma
ramo onhemi okuapy ita kupepy. Kyringue'i onhemi hpy naxei ramo
rivema jurua kuery mbojujka pai.”
“Minha avó contava o que ela
passou na época da guerra com a minha mãe. Ela contou que existia
um caminho estreito por ond eles passaram durante essa guerra. Eles
se escondiam debaixo das pedras. A sorte é que o nenê não chorou,
senão todos teriam sido mortos. Por isso que todos nós chegamos
vivos até o fim da guerra.”
Estas vozes indígenas (quase a
totalidade do exército paraguaio de Solano Lopez era formado por
soldados guarani), passados cento e vinte oito anos do fim da Guerra
do Paraguai continuam aguardando seu lugar reconhecimento pela
historiografia oficial não-índia.
Fonte:
http://www.highrisemarketing.com/djweb/historia/paraguai/paraguai.htm
– 21/10/2003
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