sábado, 21 de novembro de 2015

A Guerra do Paraguai e a questão indígena

Paulo Humberto Porto Borges*


Iluminados pela aurora magnífica percebíamos, aos nossos pés, os nossos soldados correndo pelo campo, para o local do combate, mais longe, os índios Terena e Gauicurus, que depois de se haverem comportado nesta refrega como bravos auxiliares carregavam agora aos ombros os despojos dos cavalos tomados aos paraguaios.”


Ainda hoje, cento e vinte oito anos depois do principal conflito envolvendo países latino-americanos, a Guerra do Paraguai (1864-1870) permanece apresentando diferentes interpretações e questionamentos.
A Grande Guerra, como é conhecida no Paraguai, mobilizou aproximadamente 135 mil soldados brasileiros e durou cerca de seis anos. Foi a maior intervenção militar brasileira em solo estrangeiro.
Após a guerra, da qual participaram também Argentina e Uruguai, compondo junto com o Brasil a chamada Tríplice Aliança, o Paraguai, derrotado, foi dividido e parte do seu território anexado pelos países vencedores.
Para o Paraguai as consequências foram drásticas, devido ao mortício ocasionado pelo conflito, cerca de 75% da população masculina desapareceu e o país exauriu-se economicamente. O governo paraguaio abriu mão de extensas propriedades rurais que foram prontamente adquiridas por especuladores argentinos, ingleses e norte-americanos, ocasionando a expulsão de milhares de pequenos agricultores, inclusive diversos aldeamentos Guarani.
Porém, apesar da violência e a importância deste acontecimento na historiografia latino-americana, pouco se sabe do impacto desta guerra junto as populações indígenas envolvidas no conflito, como os Terena e os Kadiwéu do Mato Grosso do Sul e parte dos chamados Guarani “paraguaios”, que se viram forçados a lutarem por seus respectivos governos nacionais. Assim como em relação as diversas comunidades indígenas Guarani do Paraguai que, mesmo não pertencendo ao exército de Solano Lopez, foram alcançadas nos recônditos na floresta paraguaia pelas consequências da Grande Guerra.
Para estas comunidades, que até então haviam logrado manter-se relativamente a salvo da sociedade não-índia – refugiados nas selvas do Paraguai e da Argentina – a Guerra do Paraguai terminou por desempenhar um triste papel civilizatório ao atravessar, ocupar e destruir o último nicho tradicional de diversos grupos Guarani. Abrindo caminho para a total desintrusão destas terras em favor do grande capital.
Durante las centurias de la colonia española y hasta la guerra del 70 essas vastas regiones eram paraguayas más por designación nominal que por ocupación real; después de la guerra de 70, los dueños del territorio, com sus inmensos montes y yerbales, eran unas pocas compañias extranjeras que implantaron un régimen feudal de un Estado dentro del Estado.”
De forma que, em 1870, existiam duas realidades indígenas distintas em relação a Guerra do Paraguai, o indígena combatente aliciado pelo estado, como os povos Terena, Kadiwéu e Guarani, e o indígena alcançado pela guerra del 70, como no caso de diversos grupos indígenas localizadas no interior do Paraguai. Todos atingidos e transformados por esta mesma guerra, mas de maneiras absolutamente distintas.
Passados quase um século e meio, este conflito continua revelando-se polêmico e suscitando questões. E, neste momento que a historiografia latino-americana, impulsionada pelos acordos econômicos do MERCOSUL, se debruça sobre o que foi, sem dúvida, a mais prolongada – com exceção da Guerra da Crimeia – e a mais cruenta guerra internacional já ocorrida no período entre 1815 e 1914, é necessário ouvir e registrar algumas vozes que ainda não foram ouvidas pela historiografia oficial a respeito deste conflito, vozes que permanecem audíveis apenas na tradição oral e no imaginário de seus respectivos grupos. Como no relato do professor Guarani Pedro Mirim explicando o 'por quê' de sua família ter sobrevivido a guerra:

Ymãxerayi oexa raka'e jurua guery joguero'a jave. Jogue raa ma taperupi vy oexa ma jurua kuery ou ma ramo onhemi okuapy ita kupepy. Kyringue'i onhemi hpy naxei ramo rivema jurua kuery mbojujka pai.”

Minha avó contava o que ela passou na época da guerra com a minha mãe. Ela contou que existia um caminho estreito por ond eles passaram durante essa guerra. Eles se escondiam debaixo das pedras. A sorte é que o nenê não chorou, senão todos teriam sido mortos. Por isso que todos nós chegamos vivos até o fim da guerra.”

Estas vozes indígenas (quase a totalidade do exército paraguaio de Solano Lopez era formado por soldados guarani), passados cento e vinte oito anos do fim da Guerra do Paraguai continuam aguardando seu lugar reconhecimento pela historiografia oficial não-índia.



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