domingo, 11 de outubro de 2015

Histórico de violência contra mulher se repete

Vítima foi abusada na adolescência e voltou a ser violentada pelo companheiro e pai de sua filha


As mãos trêmulas e a fala pausada, denunciam a fragilidade de uma mulher, que, com apenas 23 anos, carrega as marcas na pele e na memória da dor de ter vivido uma rotina de violência doméstica, Joana, assim chamada para ter dua identidade preservada, é uma vítima desde os 15 anos. Filha de um casal que tinha um relacionamento conturbado, quando tinha 12 anos e foi parar na casa de uma tia. Aos 15 anos, quando o tio ficou desempregado, ela começou a servir o homem como sua empregada, cozinhando e limpando.
O abuso, porém, passou a ser mais grave. “Eu reclamei para ele certa vez do serviço doméstico e ele disse que então ia me dar outra função. E começou a me chamar para dar banho nele. Do banho ele me levou pra cama e começou a me abusar diariamente”, relata com raiva. “reclamei para a minha tia dos serviços da casa, mas nunca tive coragem de contar dos abusos. E assim foi até os 18 anos quando fui morar com uma amiga.” A vida proporcionou novos amigos, e ela logo começou a namorar um homem mais velho.
Achei que ele me protegeria, mas, depois de uns cinco meses de namoro, eu engravidei. Fomos morar juntos e aí tudo piorou.” Tentando garantir o ambiente familiar que não teve, Joana criou a filha junto com o namorado, mesmo que ele trabalhasse até tarde. “Certa vez eu cobrei dele por que não ficava em casa conosco, e veio o primeiro soco. Acompanhado de palavrões e cobranças de que o meu papel era só cuidar da menina e da nossa casa.” A rotina de agressões se repetiu por cinco anos até que, com a ajuda de uma vizinha, a jovem se separou, em fevereiro deste ano. 'Eu tinha medo de não ter onde morar, não conseguir me sustentar, mas consegui muita ajuda. As mulheres que passam por isso são muito solidárias.”
O primeiro passo foi dado na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) de Novo Hamburgo, onde foi registrada denúncia contra o ex-companheiro. Amparada pela Lei Maria da Penha, Joana hoje recebe apoio psicológico e já conseguiu alugar uma peça para morar com a filha. Em Novo Hamburgo, após fazer a denúncia, as mulheres são encaminhadas para o Centro de Atendimento de Referência e Atendimento Viva Mulher. “Temos um alto índice de lesões corporais, ameaças e crimes contra a dignidade sexual. Também fazemos o encaminhamento das medidas protetivas de urgência, o que garante o afastamento do agressor”, afirma a titular da Deam, Cristiane Pasche.


Números impressionam


Sete municípios da Região Metropolitana figuram no top 10 entre as cidades do Estado que registraram o maior número de delitos enquadrados na Lei Maria da Penha. Os dados são do Observatório da Violência Contra a Mulher, monitoramento mensal da Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP).
Canoas e Alvorada integram a lista em todos os crimes pesquisados: ameaça, lesão corporal, estupro, femicídio e tentativa de femicídio. São Leopoldo, Viamão e Novo Hamburgo ficam de fora em apenas uma das litas, ameaça, tentativa de femicídio e lesão corporal, respectivamente. Gravataí integra a relação em ameaça, estupro e lesão corporal , e Sapucaia do Sul em femicídio.
Nos primeiros seis meses deste ano, foram registrados mais de 35 mil casos no RS. Entre eles, 274 estupros e 40 assassinatos. No comparativo com o mesmo período de 2014, casos de ameaça, lesão corporal e morte de mulheres se mantiveram estáveis. Em relação a estupro, os números mostram decréscimo. Nos primeiro semestre de 2014 foram 601 registros, contra 274 este ano.
A diretora do Departamento de Direitos Humanos da SSP, delegada Patrícia Sanchotene, destaca o trabalho integrado feito com Polícia Civil e Brigada Militar, por meio da Patrulha Maria da Penha, e Judiciário. Após a vítima fazer registros nas delegacias, o acompanhamento ocorre com a patrulha, que faz visitas de fiscalização na casa dos envolvidos. “Não tem havido reincidência em casos acompanhados pela Patrulha Maria da Penha.”
Ela lembra que a vulnerabilidade está ligada não só à segurança, mas a aspectos sociais e econômicos. Destaca que, com a lei Maria da Penha, houve aumento no número de registros, permitindo que os órgãos públicos possam agir contra os agressores.


CRIMES ATÉ JUNHO
Ameaça – 22.569
Lesão corporal – 12.777
Estupro – 274
Femicídio – 40
Femícidio tentado – 173
Fonte: Observatório da Violência contra a Mulher (SSP)


DENÚNCIAS
Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – Ligue 180 (24 horas)
Telefone Lilás: 0800 541 0803 (das 8h30min às 18h)


Denúncia é o primeiro passo para o combate


Embora os números sejam assustadores, a diretora do Departamento de Políticas para Mulheres da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos do Estado, Salma Farias Valencio, lembra que os dados são oriundos dos registros efetuados. “Mas as denúncias ainda são poucas.”
Ela diz que a Lei Maria da Penha deu visibilidade à questão, mas destaca que ainda falta informação e há descrédito por se tratar uma lei recente. A denúncia é o começo para que políticas públicas sejam postas em ação.
O foco do departamento está na prevenção e autonomia das mulheres, principalmente econômica. “Em 90% dos casos o agressor é também provedor da casa”, diz, destacando que isso determina na decisão da mulher em sair de casa. Por isso, a aposta tem sido em projetos de capacitação, em parceria com entidades e universidades, criando mecanismos que rompam com o ciclo de violência psicológica, patrimonial e física a que estão expostas.
Esta era a situação vivida pela doméstica de 34 anos que atende a Bina. Ela teve que fugir de uma cidade no Noroeste do Estado para se livrar da fúria do ex-marido. Há quatro anos ela vive às escondidas, na companhia dos dois filhos, de 6 e 8 anos, em Sapucaia do Sul. “Não gosto de ficar falando meu nome por aí. Eu apanhei muito e tenho medo de um dia reencontrá-lo.” Com cicatrizes pelo rosto e marcas pelo corpo, Bina conta que, no início, eram felizes. “O comportamento dele começou a mudar com o consumo de bebida alcoólica. Passou a ter ciúmes de tudo e de todos. Me acorrentava, me batia e me mantinha presa.” Cansada das agressões, fez as malas, pegou os filhos e nunca mais deu ou teve notícias da vida que deixou para trás. “Nunca procurei ajuda porque não tive coragem e ainda tenho muita vergonha do que me permiti.” Bina é um caso não registrado. Ela temeu os constrangimentos e se calou. “Só quero esquecer.”


SERVIÇOS E DADOS
São Leopoldo – Informações da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres apontam que, a cada dia, cinco mulheres sofrem violência no município. No primeiro semestre deste ano, foram 337 casos registrados de lesão corporal e 499 ameaças na cidade.
Canoas – O Centro de Referência para Mulheres Vítimas de Violência Patrícia Esber já atendeu a 2 mil casos em quatro anos de atuação. Pelo menos 47% delas têm entre 35 e 49 anos e 51,5% têm até o ensino fundamental completo.
Esteio – O Posto de Atendimento Especializado à Mulher, que funciona na delegacia, instaurou nos oito primeiros meses deste ano 499 inquéritos de violência doméstica. Dos 410 remetidos à Justiça, 295 geraram medidas protetivas.
Sapucaia do Sul – A Coordenadoria de Políticas Públicas para mulheres do município aponta uma média de 80 atendimentos por mês. As mulheres não precisam fazer ocorrência policial para receber acolhimento no local.
Parobé – A Coordenadoria da Mulher registra média de 40 casos de violência por mês na cidade. A maioria das vítimas procura o serviço aconselhadas pela Polícia Civil, após registrar o caso. O local oferece orientação jurídica.
Guaíba – A Secretaria Municipal de Assistência social atende às vítimas a partir de uma demanda voluntária. Elas são orientadas a denunciar as agressões. No primeiro semestre deste ano, a cidade teve 135 registros de lesão corporal.
Viamão – O município conta Patrulha Maria da Penha. Delegacia da Mulher e Promotoria. A patrulha tem quatro agentes e faz o acompanhamento dos casos. Até junho deste ano, foram seis tentativas de femicídio na cidade.
Sapiranga – A Casa Abrigo Regional Jacobina Maurer está sendo criada com recursos federais e será aberta no ano que vem. Outros municípios da região também utilizarão o serviço do local, que abrigará mulheres – e seus filhos – que precisarem sair de casa.
Gravataí – A cidade conta com a Casa Lilás, criada em 2007. Desde sua inauguração até agosto deste ano, foram atendidas, 4.248 mulheres vítimas de violência. Em 2014, foram 2.273 atendimentos psicológicos e 468 acolhimentos.
Alvorada – A Secretaria Municipal de Direitos Humanos e a Diretoria de Políticas Públicas para as Mulheres encaminham os casos relacionados a gênero. No primeiro semestre deste ano, o município já registrou 14 ocorrências de estupro.
Campo Bom – O Centro de Referência em Assistência Social tem uma equipe formada por psicólogo e assistente social pra receber as vítimas. O serviço atende a uma média de 15 mulheres por mês, segundo dados do município.




Fonte: Correio do Povo, página 9 de 11 de outubro de 2015. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário