por Felippe Hermes
Apesar de menos aparente que a crise nas contas públicas do governo federal, inúmeros estados têm enfrentado situação semelhante, do Caburaí ao Chuí. Estados como Pernambuco e Goiás sistematicamente têm atrasado o pagamento de salários, enquanto São Paulo, que apenas nos seis primeiros meses do ano teve uma queda de quase 4% no seu PIB, se vira como pode para equilibrar as contas com despesas maiores e uma queda nominal na receita. Nenhum estado, porém, se encontra em uma situação tão complicada quanto a do Rio Grande do Sul.
Estado mais meridional do Brasil, o Rio Grande do Sul é geralmente lembrado pela participação ativa na política nacional. Desde que Deodoro da Fonseca, ex-governador do estado, proclamou a República, foram nada menos do que 7 presidentes gaúchos em nossa história – além de nomes como Dilma Rousseff, que apesar de nascida em Minas, fez carreira política no estado.
A história do Rio Grande do Sul, como a de qualquer estado, possui suas peculiaridades. Na maior parte, os gaúchos possuem uma relação enraizada com a própria história, valorizam o passado e em muitos casos, agarram-se a ele para evitar mudanças. Essas características culturais geram forte impacto na economia local – não apenas pela valorização de marcas locais (de bancos ao varejo; as marcas líderes são em geral ilustres desconhecidas dos demais brasileiros), mas também pelo receio em permitir mudanças na sua própria economia.
É desta relação excessiva com o passado que decorre uma boa parte dos problemas estruturais da economia do estado, que desde os anos 90 encontra dificuldades em aderir a uma renovação econômica – como fizeram Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais, onde a indústria ganha peso e se diversifica. Enfraquecido, o estado ainda enfrenta inúmeros problemas políticos, sem continuidade de qualquer projeto. O Rio Grande do Sul carrega há pelos menos 20 anos um peso grande do seu endividamento, fruto de déficits fiscais em 37 dos últimos 43 anos.
Neste cenário, ganham peso políticos que prometem soluções milagrosas e que garantam um retorno ao tempo em que os gaúchos dominavam índices de educação e desenvolvimento humano. Nenhum político, porém, fez tanto este jogo quanto o petista Tarso Genro. Eleito em 2010, após um governo tucano marcado por um ajuste fiscal rigoroso, Tarso elegeu-se com a promessa de “fazer o Rio Grande do Sul” voltar a crescer. A realidade, porém, foi bastante distinta. Tarso utilizou-se de recursos de terceiros e empréstimos para pagar a folha de pessoal e conceder aumentos sem haver receita prévia. Apesar disso, sequer chegou a pagar o piso dos professores, instituído por ele mesmo quando Ministro da Educação.
Com políticos que prometem o impossível, um estado inchado e uma população disposta a acreditar em qualquer tentativa de terceirizar responsabilidades, o Rio Grande do Sul pode parecer um retrato fiel do Brasil, mas há alguns outros fatores que mostram como ele pode ser também um alerta para o futuro do país. Abaixo listamos alguns deles.
1. Gaste sempre além do que você possui, deixe o problema para o governador seguinte.
A situação atual, como se sabe, não surgiu do dia para a noite. São apenas 6 anos de receitas maiores que despesas nos últimos 43 anos. Como todos os estados, o Rio Grande do Sul ampliou sua dívida durante o período da ditadura militar e no início do Plano Real. Os déficits eram recorrentes no Brasil naquela época, pois era plenamente possível financiar-se criando moeda (no caso da União) ou contraindo empréstimos junto a bancos estaduais.
Os governos estaduais, a União e os bancos lucravam enquanto a população perdia com a inflação. Tal fato nos levou a uma concentração de renda jamais vista. Não por acaso, o fim da inflação com o Plano Real significou uma enorme perda de receita. Os déficits passaram a ser cobertos por meio de aumento de impostos e de dívidas. Para sanar este endividamento nos estados, a União criou o PROES, que refinanciou todas as dívidas com juros menores do que os pagos no mercado. Apesar da onda de privatizações, os governos estaduais tiveram um elevado aumento de endividamento, em boa parte graças aos juros de mais de 40% ao ano em 1995 – tudo para conter a inflação e atrair os dólares que manteriam a paridade do real.
O sucesso desta política é questionável. O do plano não. Em apenas 2 anos, o Plano Real tirou mais de 8 milhões de brasileiros da miséria, nos levando a vivenciar um momento de estabilidade que permitiu um crescimento no consumo nunca antes visto por parte da população. Na parte fiscal dos governos, porém, pagamos por isso até hoje.
Para controlar a situação, os estados optaram por elevar a arrecadação – ainda que criando mecanismos para se apropriar do dinheiro alheio, a opção escolhida pelo Rio Grande do Sul. Em 2004, o governador Germano Rigotto, do PDMB, enviou um projeto que permitia ao estado sacar até 75% dos depósitos judiciais (aquele dinheiro que fica retido na justiça enquanto você tem uma causa sendo julgada). Para se apropriar destes recursos (algo que Dilma já cogitou), o governo paga juros iguais à taxa SELIC. Tarso Genro, em 4 anos, sacou o equivalente a 75% dos depósitos judiciais, ampliando a dívida em mais de R$ 7 bilhões, algo que, quando somado aos saques no Caixa Único (onde o governo se apropria do dinheiro de outros órgãos independentes), chega a R$ 11 bilhões. O custo desta política alcança R$ 1 bilhão a cada ano.
A história do Rio Grande do Sul neste caso não se distancia muito da brasileira – mas como vemos abaixo, o Rio Grande do Sul tomou um caminho não muito correto e transformou o que era ruim em algo ainda pior.
2. Oponha estabilidade e crescimento.
Como o professor e economista Marcelo de Paiva Abreu descreve em seu livro “A ordem do progresso”, a historia político-econômica do Brasil pode ser descrita por meio de uma eterna luta entre estabilidade e crescimento. Tal noção decorre de uma outra ideia, que encontra no Brasil um celeiro fértil: a de que o Estado deve ser um propulsor do crescimento. Poucos presidentes descrevem tão bem esta ideia quanto os gaúchos João Goulart e Getúlio Vargas.
Ambos comumente associados ao populismo e ao nacionalismo, iniciaram seus governos por meio de um ajuste fiscal. Ambos entendiam que o Estado deveria ter um papel crucial em desenvolver a economia e que isto só seria possível com um Estado relativamente estável do ponto de vista fiscal. Jango, que terminou seu governo deposto pelos militares e associado a políticos como Brizola, iniciou seu governo com um banqueiro no Ministério da Fazenda, enquanto Getúlio, que terminou por conceder aumentos de 100% no salário mínimo e criar estatais como o BNDES e a Petrobras, defendeu de início que o salário deveria ser contido e acompanhar sempre a produtividade.
No Rio Grande do Sul, porém, tais ideias apresentam o ponto crucial de cada eleição. Nenhum governador se elege com um discurso que não faça menção a algum deles: ajustar as contas ou “fazer o estado voltar a crescer”. Simplesmente nenhum político – ou mesmo o grosso dos eleitores – consegue compatibilizar a ideia de que um Estado fiscalmente responsável e que gaste apenas o que tem, cria um ambiente mais favorável do que um Estado que está constantemente gastando acima do que arrecada e criando incertezas sobre arrecadação e impostos futuros.
3. Ao trocar de governo, abandone tudo feito até então.
Provavelmente você deve associar esta ideia à clara mudança de nome promovida por Lula ao criar o Bolsa Família unindo programas pré-existentes e expandindo-os para então chamá-lo de seu, mas a questão no Rio Grande do Sul vai um pouco além. Não apenas os políticos, mas em maior parte o próprio eleitorado, não vê qualquer correlação entre votar em projetos antagônicos e aprofundar a crise.
Vivendo uma crise causada por quatro décadas de déficits públicos, o Rio Grande do Sul é o único estado do país a não reeleger um único governador desde o início da redemocratização em 1985. Mesmo no auge do crescimento de arrecadação, em 2010, quando o PIB cresceu acima de 7%, o estado não reelegeu um chefe de governo.
As razões são bastantes simples. Impossibilitados de governar e tendo de passar 4 anos resolvendo problemas de gestões passadas, nenhum governador de fato governa. Todos os projetos anteriores são abandonados e reescritos com a benção do povo, que acredita ainda hoje em soluções mágicas, como se o novo governador trouxesse uma nova chance de resolver problemas.
Evidente que isto não significa defender uma perpetuação de poder. O governo federal mesmo é capaz de provar isso – quando em 2003 Lula manteve inúmeras políticas iniciadas no governo Fernando Henrique, aprofundou um ajuste fiscal baseado em reformas menores como no crédito e na própria gestão pública. Lula, que pode ser lembrado por querer virar a página com a mudança de nome no Bolsa Família, manteve o tripé econômico (superávit primário, cambio flutuante e controle da inflação) intacto. O resultado foram 8 anos de progressão na nota do Brasil junto a agências de risco internacional. Tais políticas foram abandonadas em 2011 – e a consequência estamos vivendo agora.
4. Terceirize responsabilidades.
Assim como seus eleitores – e a maioria das pessoas – o eleitorado gaúcho compra sem grandes dificuldades a ideia de que os problemas decorrem da forma como a União age em relação ao estado. Tal ideia ignora o fato de que todos os estados enfrentam problemas semelhantes. Não obstante, nenhum deles se encontra em situação tão complicada quanto o Rio Grande do Sul.
Em uma entrevista ao jornal Zero Hora desta semana, o ex-governador Tarso Genro elenca uma série de medidas que supostamente tomaria se tivesse sido reeleito, para combater o déficit de R$ 5,4 bilhões (para efeito de comparação, os gastos em saúde somam R$ 3,8 bilhões). Para Tarso, a solução é simples: cobrar o governo federal. O governador elenca medidas como entrar com ações na Justiça para reaver gastos do estado em obrigações da União, ou demandar maiores repasses. Ignora totalmente, com a complacência de boa parte do eleitorado, que o governo federal também está sem recursos.
A maior parte da população do estado acredita que seus problemas se devam unicamente à dívida do Rio Grande do Sul com a União – que na visão de muitos, age como a Alemanha à Grécia: um suposto “carrasco” que impõem sacrifícios. A dívida com a União, entretanto, está longe de ser o maior ou o único dos problemas. Inúmeros estados gastam o mesmo que o Rio Grande do Sul com a dívida (cujos gastos são limitados a 13% da receita). Nenhum deles está em situação tão ruim.
A dívida é para o Rio Grande do Sul o que a suposta crise internacional é para Dilma. No estado nada se faz em função da dívida, que limita o governo – supostamente frágil e inocente diante da situação. Esta situação, porém, esconde outras questões. O Rio Grande do Sul possui um déficit previdenciário de fazer inveja a qualquer outro estado. Nada menos que 54% de sua folha de pagamentos é destinada a pagar aposentados, contra 27% do que São Paulo, o segundo estado que mais gasta do país, possui de custo. A dívida com os saques no caixa único e depósitos judiciais, que é 5 vezes menor que a dívida com a União, possui juros semelhantes (R$ 1 bilhão contra R$ 1,3 bilhões). Tarso é responsável por mais de 2/3 desta dívida.
5. Inverta a lógica de uso dos recursos públicos.
Como mencionado anteriormente, o Rio Grande do Sul é o estado que mais gasta em previdência no país. Um déficit que sozinho é superior aos gastos de saúde, educação e segurança somados. Ao todo, 29% da receita líquida do estado (aquela que fica realmente com o estado e não é transferida aos municípios) é destinada ao pagamento de aposentadorias. Há hoje 1,1 aposentado ou pensionista para cada funcionário na ativa.
Entre 1971 e 1974 o estado do Rio Grande do Sul aplicava 1,9% do PIB em educação e 1,1% em previdência – e agora despende 1% em educação e 2,9% em previdência. A inversão de lógica para os gaúchos é um caso raro em todo o Brasil. Enquanto isso, o funcionalismo segue sendo mal pago (e agora com salários atrasados), por conta da incapacidade do governo de resolver os problemas orçamentários.
Nesta situação, o mais razoável seria mudar a lógica da previdência e criar um fundo que garantisse as aposentadorias no futuro. Não para os funcionários, que acreditam que receber salários integrais em um modelo onde os funcionários sequer pagam 20% do total necessário das aposentadorias é viável para o futuro. Neste ponto, felizmente a União parece já estar mais adiantada – o fundo de pensão dos funcionários federais já existe, apesar da baixa adesão.
6. Faça com que as estatais sirvam a si mesmas.
Dono de 16 empresas estatais, o estado do Rio Grande do Sul opera de saneamento básico, geração, transmissão e distribuição de energia à mineração, passando por bancos, armazéns, distribuidoras de gás, operadoras de cartão de crédito, transporte ferroviário de passageiros, etc. Assim como descreveu o presidente da Vale e ex-presidente do conselho de administração da Petrobras, as empresas estatais vivem para servir a si mesmas. Um exemplo é a Companhia de Silos e Armazenagens, cujos gastos com processos trabalhistas superam a receita, fazendo com que a empresa deva inúmeras vezes mais do que é capaz de arrecadar.
Toda esta enormidade de empresas se soma às inúmeras fundações estaduais, que cuidam de zoológicos a centros de esporte. Costuma-se dizer que o Rio Grande do Sul possui 2 zoológicos: um deles é o melhor da América Latina, o outro é estatal. O zoológico de Sapucaia, o que pertence ao estado, está hoje na mira para ser privatizado. Sozinho, gera custos de alguns milhões por ano – nada que seja relevante diante do orçamento – mas a lógica à resistência em privatizá-lo é o que mais interessa. No estado há leis que determinam a realização de um plebiscito para privatizar as estatais (ironicamente o deputado estadual Marcel Van Hattem apresentou um projeto que determina a realização de plebiscitos para criar estatais – nunca é demais lembrar que Tarso criou uma estatal para gerir rodovias que hoje gera prejuízo).
Transformar órgãos estatais em prestadores de serviço para o estado que concorrem na iniciativa privada é uma marca comum entre governos de todo o mundo (como Nova Zelândia ou Inglaterra). No Brasil essa ideia resiste em boa parte porque os governantes se apropriam das receitas destes órgãos de forma indevida. Assim, quando você paga por um serviço da Anvisa ou de uma fundação estadual, está na realidade colocando dinheiro no caixa do governo e não no da agência. Isto impede investimentos maiores no próprio setor e torna as agências dependentes e meramente arrecadatórias.
Essa ideia, que hoje é testada em outros estados, como São Paulo, é a pretendida pelo governador gaúcho. No âmbito federal, segue ainda longe de ser implementada. O governo se apropria do Fistel (um fundo de telecomunicações pago com seu dinheiro e que é usado para gastos correntes do governo, não para investir em telecomunicações), com a mesma facilidade com que abocanha novos impostos.
7. Oponha-se a reformas e culpe o remédio pelo mal estar.
Assumindo o governo em janeiro, o governador José Ivo Sartori (PMDB) completa 9 meses no cargo com salários pagos em atraso, um déficit projetado para o ano superior a R$ 4 bilhões, greves, um surto de violência e uma economia em recessão.
Seu remédio foi reduzir em 21% as despesas do estado que podem ser alteradas. Sartorireduziu ou zerou gastos em materiais de distribuição gratuita, diárias, aluguel de carros, telefones oficiais e diminuiu o número de cargos comissionados pela metade.
Depois disso funcionou então? Não exatamente. Todo o governo que se elege no estado possui gastos já pré-compromissados equivalentes ao todo do orçamento. Por exemplo? Apenas com o déficit na previdência e com os juros da dívida, o estado gasta mais de 43%. A cada R$ 100 que entram nos cofres do estado, R$ 43 bancam questões do passado – o restante banca os funcionários, investimentos e custeio. É apenas no custeio que Sartori pode cortar, um valor que fica em torno de R$ 7 bilhões anuais, de onde o governador espera reduzir R$ 1,5 bilhões.
No âmbito federal, a situação é praticamente a mesma. Senadores e deputados agem de modo a criar gastos pré-programados que reduzem a capacidade do governo de definir o orçamento. A medida tem o intuito de garantir que os governos não deixem desamparados setores importantes, mas acaba por impedir o governo de reduzir seus gastos em momentos de crise.
8. Distribua direitos e quando não houver dinheiro pra bancá-los, culpe a falta de vontade política.
Após perder a eleição em outubro, Tarso deu uma amostra do que Dilma poderia ter feito: enviou em novembro pacotes concedendo aumentos salariais até 2018, mesmo sem deixar recursos em caixa para pagá-los. Hoje, com salários parcelados, não é raro encontrar quem diga que “ao menos Tarso pagava os salários em dia”. Esta é a essência do Rio Grande do Sul atual. O funcionalismo acredita que, ainda que o estado se afunde em dívidas e comprometa todo o futuro da população que arcará com elas, esse cenário é menos pior do que cortar gastos.
Tarso conseguiu bancar os salários graças aos empréstimos que fez junto ao BID e ao BNDES. Deixou de investir para gastar com algo que não poderia arcar no futuro. Por isso, apesar da dívida ter seus 40 anos e a ingovernabilidade ser tão antiga quanto, o petista é um agente central nesta crise. Tarso cortou todas as saídas, zerou a possibilidade de investir e apenas deixou uma opção ao governo: deixar de atuar em setores que não lhe dizem respeito e garantir que a iniciativa privada faça o seu papel.
Constantemente utilizamos dados do TCU como fonte. O modelo de auditoria pública no Brasil é razoavelmente eficiente, em boa parte pois não faltam irregularidades para serem encontradas. No caso dos tribunais estaduais, a situação não é tão positiva. Em 23 anos nenhuma conta de governo foi reprovada. Em suma, o tribunal que consome mais de R$ 600 milhões em recursos, acredita que nenhum político possui responsabilidade pela tragédia. Resta torcer para que o TCU não siga pelo mesmo caminho na análise das contas de Dilma. Neste ponto, o Rio Grande do Sul não deve ser um “modelo a toda a terra”.
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