domingo, 5 de julho de 2015

Mama África

Um dos maiores países mestiços do mundo, o Brasil foi gerado em ventre de escravo. Raras foram as sociedades coloniais nas quais terá havido tamanho intercurso sexual entre senhores e escravas como o que aconteceu na lascívia dos trópicos brasileiros. A partir do instante em que o número de “fêmeas” vindas da África aumentou, e o trabalho forçado adquiriu feições também domésticas, muitas escravas foram transferidas da senzala para o seio da casa grande. Eram amas de leite e mucamas, “escolhidas, dentre as mais limpas, as mais bonitas, as mais fortes”, como observou Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, clássico da historiografia brasileira quase internamente dedicado ao assunto. No Brasil, como em Portugal, mãe que se prezasse jamais amamentava o bebê. Por isso, inúmeros foram os filhos de senhores criados pelas mães pretas. O próprio Freyre, no mesmo livro, atribui à amamentação em seio negro a paixão sexual desenvolvida pelos herdeiros da casa grande por “mulheres de cor”. Não parece ser apenas esse aspecto psicológico o que explicaria o assédio às fêmeas da senzala. Afinal, como comente Freyre, “não existe escravidão sem depravação sexual. Em primeiro lugar, o próprio interesse econômico a favorece, criando nos proprietários imoderado desejo de possuir o maior número possível de crias (…) Joaquim Nabuco colheu num manifesto escravocrata de fazendeiro as seguintes palavras, tão ricas de significação: “a parte mais produtiva da propriedade escrava ainda é o ventre gerador”.
Não era apenas o desejo, consciente ou não, de fazer a escrava reproduzir um novo servo o que empurrava muitos senhores ao relacionamento com as mulheres da senzala. A perversão pura e simples foi um competente constante nessa relação. O que mais poderia explicar o fato de ter surgido no Brasil a crença de que “para o sifilítico não há melhor depurativo do que uma negrinha virgem”, defendida, ainda em 1869, pelo Dr. João de Azevedo Macedo Jr.? Ou a confissão de que um “sacerdote de missa” fez ao visitador inquisitorial, na Bahia, em 1591, revelando que, certa noite, levara para sua casa “uma negra, que seria da idade de seis ou sete anos”, e “a penetrou pelo vaso traseiro”? O que mais explicaria o fato de algumas senhoras, ciumentas com a relação, real ou suposta, de seus maridos com certas mucamas, terem mandado arrancar os olhos de tais moças “e trazê-los a presença do marido, à hora da sobremesa, boiando dentro de uma capoteira”? Ou o fato de que qualquer escravo que por ventura caísse no erro de se deixar seduzir por sua senhora estivesse condenado a ser “castrado com uma faca mal afiada , ter a ferida salgada e, por aí, se enterrado vivo”?
Desnecessário prolongar a lista. O panorama de desregramento sexual no Brasil colônia era tal que, na aurora do século 18, o bispo do Pará escreveu: “A miséria dos costumes neste país me faz lembrar o fim das cincos cidades por me parecer que novo nos subúrbios de Gomorra, mui próximo, e na vizinhança de Sodoma”. O pecado chegara ao sul do Equador.

O Brasil Negro

Capoeira, samba, feijoada, candomblé, vatapá. Que pais seria o Brasil sem o legado da cultura africana? Certamente não o mesmo que hoje é – e dificilmente mais colorido, dinâmico, múltiplo e ruidoso. Falar na “influência cultural” que os negros tiveram no Brasil é quase um deboche: o que parece ter havido, em certas áreas do país, é quase tão somente uma adaptação dos padrões de comportamento dos escravos às novas condições de vida a que foram submetidos. Depois que eles se estabeleceram e se expandiram, os demais povos é que absorveram e adotaram inúmeras tradições africanas. O Brasil não comeria o que come se não fosse a riquíssima herança deixada pelos 4,5 milhões de escravos trazidos da África sob as mais árduas condições e, por mais de três séculos, jogados nas praias, florestas, morros e cidades do Novo Mundo. Embora o Nordeste tenha sido a área que recebeu maior influência dos povos africanos, não há um só lugar do Brasil – nem mesmo os predominantemente europeus Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul – que não tenha sido transformado pelo legado negro.


Fonte: História do Brasil (1996), página 78.

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