por FERNANDO SCHELLER
Assustada com a crise, classe C abre mão de conquistas de consumo e recorre a bicos para equilibrar o orçamento
Seis e vinte da manhã no bairro Bonsucesso, em Guarulhos. Valmira Souza passa apressada pelas roupas que havia pendurado às 11 horas da noite anterior. Não pode perder a condução - o ônibus passa às 6h33. Em dias bons, às 9h está na casa da patroa, que mora em um bairro nobre da capital. Enquanto corria corredor afora, a diarista, de 39 anos, ainda não sabia que, naquela segunda-feira, a sorte não estaria a seu favor. Até o terminal Armênia, na região norte de São Paulo, seriam três horas e meia. E ainda teria de pagar o metrô e fazer duas baldeações.
Trabalhando para quatro patrões diferentes, Valmira tira R$ 1,8 mil por mês. Após 19 anos de casamento, decidiu se separar. O ex-marido, desempregado, exigiu ser ressarcido do dinheiro que gastara com o material da casa que construíram no terreno do irmão dela. O saldo entre o que Valmira tem de pagar e a pensão definida em juízo é negativo em R$ 195 ao mês. A diferença faz falta. A conta do mercado não para de subir, quatro filhos na escola, a máquina de lavar está com um barulho estranho. “Vou ter de resolver, dar um jeito. Sozinha.”
Ao longo de 2015, o brasileiro sentiu o “susto” da crise, diz André Torretta, presidente da consultoria A Ponte Estratégia, especializada na classe C. Água, luz e supermercado agora abocanham uma parcela bem maior da renda. Por isso, a nova classe média vem cortando supérfluos - iogurte, bolacha recheada, hambúrguer na praça de alimentação e cinema aos fins de semana. O carro, conquistado em suaves prestações, não raramente fica na garagem por causa do combustível caro. A intenção de consumo das famílias está no menor nível em cinco anos.
O que o consumidor sente na pele está transparente nos indicadores econômicos. Enquanto a inflação só aumenta - os alimentos subiram 4,56% de janeiro a maio, segundo o IBGE -, a renda vai no sentido contrário. O rendimento médio do trabalhador ficou em R$ 2.138 em abril, queda de 2,9% em 12 meses. A partir deste domingo, o Estado vai mostrar, em uma série de três reportagens, os efeitos da crise para famílias e empresas. Nesta edição, reuniu histórias sobre como o brasileiro está lidando com a redução da renda.
Apesar do cenário negativo, especialistas na classe média brasileira afirmam que essa população não é fatalista. “Essas pessoas sabem que atingiram um novo patamar nos últimos dez anos. E vão se virar para proteger o que conquistaram”, diz Torreta, da A Ponte Estratégia. Já Luciana Aguiar, fundadora da consultoria Plano CDE, diz que esse público conta com fortes laços de solidariedade que são um “porto seguro” em momentos de dificuldades.
Mais do que nada. Sete anos atrás, Ruth Mendonça, então com 21 anos, saiu à rua a pé com os quatro filhos, dois no colo e dois agarrados em suas roupas, em direção à casa da mãe. Na época, não sabia fazer nada - tinha engravidado aos 14 anos e sempre dependera do ex-marido. Ao pedir abrigo, precisava contribuir. Resolveu fazer as unhas das conhecidas. De mão em mão, acabou nas esmalterias dos Jardins. Agora, administra um salão a poucos passos de sua casa, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Esmaltes expostos nas paredes amarelas, uma cadeira de cabeleireira e futuros serviços de depilação na sobreloja. “Tudo é bem simples”, diz. “Mas, quando olho para trás, acho que estou rica.”
Depois de anos em que cada dia parecia ser um degrau acima rumo a uma vida melhor, Ruth agora sente o baque da crise. Como administradora, não paga aluguel, mas dá uma comissão ao dono do imóvel. A cabeleireira tira a própria parte ao fim do dia de trabalho. Ruth fica com o que sobra: chegava a ter R$ 2 mil para ajudar no sustento da casa que divide com a mãe, o irmão e os filhos - uma “escadinha” de 12, 10, 9 e 7 anos. Mas este ano o movimento não para de cair. Agora, no fim do mês, ela tem, quando muito, R$ 1,3 mil. Embora esteja sendo obrigada a cortar gastos, não permite que a situação vire motivo para drama.
“Tem gente que só quer o lado fácil da vida. Se eu não puder ter toda a fartura, pelo menos vou ter um saco de arroz para pôr na mesa.”
Mas Ruth não vai ficar de braços cruzados. A clientela sumida, ao ser abordada na rua, assume que está difícil colocar comida na mesa e cuidar ao mesmo tempo da beleza. “Vou panfletar, mostrar nossas promoções”, diz ela. Corte de cabelo com depilação sai mais barato, tintura com pedicure também. “Não posso pensar que estou nos Jardins. Aqui, R$ 5 menos pode fazer a minha cliente voltar.”
Enquanto Ruth tenta revitalizar seu negócio, do ouro lado da cidade, no Peri Alto, zona norte, a dona de casa Silvia Fernandes faz e refaz as contas. Com R$ 1,8 mil por mês para administrar, decretou no início deste ano o fim das prestações de eletrodomésticos e das compras de roupas e calçados. “Tênis novo só quando o atual furar.” Para abrigar a família, os cômodos foram construídos morro abaixo. Sala e cozinha ficam no piso mais alto, enquanto os dois quartos e o puxadinho que o filho e a nora construíram ficam no “andar” de baixo. São nove moradores: além de Silvia, há os cinco filhos (todos homens e com nomes iniciados com a letra M), o marido, a sogra e a nora. Isso sem contar dois cães e seis pássaros. Na casa, só o marido, o filho e a sogra trabalham - a nora, operadora de caixa, foi demitida no início do ano. A explicação foi padrão: corte de custos.
Surpresa no portão. Já era noite quando Valmira virou a esquina da rua de sua casa, em Guarulhos. No portão, uma silhueta conhecida: o ex-marido, escorado na antiga moto do casal. Ela já havia depositado o pagamento do material da construção, mas ele não havia pago a pensão dos filhos. Estava cansada demais para convidá-lo para um café, preferia manter a conversa rápida. Na calçada, fizeram um acordo, sem juiz ou assinatura. Ela ficaria livre dos depósitos mensais de R$ 595 e ele não pagaria a pensão de R$ 400 por um ano. Começou ali mesmo a fazer planos para o dinheiro extra: “Vou guardar para dar entrada num barraco.”
ONDE COME UM COMEM DEZ? ISSO NÃO EXISTE MAIS
A casa da missionária Lislei sempre foi ponto de encontro; hoje, convidados surpresa para o almoço não são mais bem-vindos
A casa de Lislei Silva Santos, 53 anos, sempre um foi um ponto de encontro da vizinhança do bairro Parque Peruche, na zona norte de São Paulo. Lislei e a família não são só conhecidas como moradoras e empreendedoras – ela mantém um pequeno salão de beleza no terreno de sua residência –, mas também como pregadoras da palavra divina. Testemunha de Jeová, Lislei não raramente bate de casa em casa em uma peregrinação evangelizadora.
Durante muitos anos, os que se dispunham a abrir a porta para a palavra de Deus não raramente eram recebidos na casa de Lislei. Aos domingos, eram comuns os almoços para mais de dez convidados. Lislei entrava com a carne e as bebidas e quem era convidado (ou se convidava) trazia um tira-gosto ou uma sobremesa. “Mas o pesado sempre ficava com a gente”, lembra a cabeleireira. Durante muitos anos, o arranjo funcionou bem. Mas a crise deu um basta nas festas. “Onde come um comem dez? Isso não existe mais.” Em momentos como o atual, Lislei está priorizando a própria família.
A renda da casa caiu pela metade. O movimento do salão de beleza em que Lislei faz de tudo – tintura, limpeza de pele, manicure – está devagar, quase parando. Dali, conta ela, não saem mais de R$ 300 por mês, menos de um terço do que ganhava antes. O salário do marido, de R$ 2 mil brutos, mal dá para as despesas da casa – o casal tem duas filhas adolescentes. O pagamento das contas é com base em um rodízio. “A gente sempre teve as contas em dia. Agora, a gente paga a conta de luz em um mês e a de água no outro, para não cortarem.”
Mudança. Diante das dificuldades, Lislei resolveu mudar de profissão. Está fazendo um curso técnico de podologia na UniSant’Anna. Ainda faltam dois anos, mas ela está confiante de que, ao se formar, sua renda ficará menos volátil. “Quando era criança, meu sonho era ser bioquímica. Com esse curso, vou conseguir trabalhar na área da saúde”, diz a cabeleireira. “Os idosos precisam cuidar dos pés, não é um serviço que eles podem economizar, como o do salão de beleza.”
Enquanto não consegue concretizar a mudança, Lislei vai cortando no que pode. Mas faz uma ressalva: apesar da economia com as festas de fim de semana, nunca vai fechar as portas da casa para quem está passando necessidade. Pelo menos um prato de arroz com feijão, diz ela, sempre vai ser possível oferecer.
SOBREVIVENDO, COM UMA PEQUENA AJUDA DOS AMIGOS
Na crise, os laços de solidariedade ficam mais evidentes: ajuda vem da família e também dos vizinhos
Orlanita dos Santos foi, mais de uma vez, socorrida pela caridade de estranhos. A solidariedade, ela descobriu, vai além dos laços de sangue. Uma amiga de longa data propôs sociedade em um brechó – só para simplesmente doar-lhe o negócio ao perceber que a renda seria insuficiente para uma divisão. As vizinhas do distrito de Cangaíba, zona leste de São Paulo, constantemente se compadecem de seu desespero: os R$ 10 para a quitanda são trocados por uma pilha de roupas passadas, os R$ 20 para completar o botijão de gás viram uma limpeza rápida. Até a cadela Jade, que apareceu e foi ficando, ganhou uma madrinha para a ração e o banho. Todos ao redor de Orlanita, de certa forma, revivem com ela o momento em que sua história de prosperidade se transformaria em um revés do qual jamais se recuperaria. Até porque sempre que ela lembra o dia – 12 de março, faz questão de frisar –, não consegue conter as lágrimas, mesmo tantos anos mais tarde.
Orlanita nasceu em Jacobina, no sertão da Bahia, e desde que se lembra sonhava seguir os passos da irmã, que já morava em São Paulo. A oportunidade surgiu em 1981. A futura patroa enviou-lhe o dinheiro. Trabalhou de graça cinco meses para pagar a dívida. Passou por casas de família, pegou no pesado como soldadora e, finalmente, trabalhou 17 anos no restaurante da fabricante de eletrônicos Philco. No fim dos anos 90, quando o serviço foi terceirizado, deixou a empresa. Estava rica, nunca tinha visto tanto dinheiro junto: R$ 12 mil. Confiante no próprio talento – “sempre tive o dom da venda”, diz ela –, decidiu investir em si mesma. Foi à rua do ouro, no centro de São Paulo, e comprou um mostruário cheio de anéis, pulseiras e brincos. Tudo ia muito bem. Em questão de meses, tinha R$ 25 mil – tudo reinvestido em mercadoria. Um dia, antes de voltar para casa, resolveu passar na padaria. Precisava de um café. Havia sido seguida. Em poucos segundos, os ladrões levaram tudo. Fim de tarde do maldito 12 de março de 1999.
Então com 40 anos, Orlanita se viu sem nada. A confiança deu lugar à depressão. Só não desistiu de vez porque descobriu que estava grávida. Foi mãe aos 41 anos. A preocupação constante com as dívidas acabou com o casamento, o trabalho pesado no restaurante rendeu-lhe hérnias de disco e corroeu-lhe os ossos do quadril – está na fila do SUS por uma prótese há oito anos. Mesmo com dores constantes, trabalha duas vezes por semana na casa de uma família para pagar R$ 800 do aluguel. Recebe R$ 112 de Bolsa Família e o que ganha com o brechó vira comida. Na quinta-feira em que recebeu a reportagem do Estado, havia dado sorte: faturara o suficiente para encher uma sacola de frutas e verduras e uma bandeja de ovos. Não precisaria, pelo menos por um dia, recorrer à compaixão de conhecidos.
Contas. “Confia em mim.” Era tudo o que Patricia Limeira, Pati Biba para os amigos, podia dizer ao dono do mercadinho próximo à sua casa, no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo. Não tinha como prometer que pagaria na próxima semana ou no mês que vem. Meses se passaram sem que Pati fechasse um único show. A produtora musical que antes conseguia cobrar R$ 12 mil para uma apresentação de um conjunto de samba – recebendo 20% de comissão –, agora em sequer fechava um evento em troca da bilheteria. As contas se avolumaram. Percorria a cidade atrás de casas noturnas interessadas em seus shows com o dinheiro contado para o ônibus – R$ 7 para ir e voltar. “Saía de manhã e só comia à noite, em casa.”
Nos bons tempos, três ou quatro anos atrás, Pati chegava a tirar R$ 6 mil por mês. Em vez de contar o dinheiro da condução, circulava de carro. Comprava calça de marca no shopping e não se preocupava em negociar a conta do mercado. Não precisava depender da ajuda dos pais, Jorge e Ruth, proprietários da casa onde mora. “Acho que esse tempo bom não volta mais”, conforma-se. A venda do carro e pequenos shows que finalmente conseguiu fechar ainda não foram suficientes para as contas ficarem totalmente em dia. Pati sentiu na pele que, na crise, o gasto com diversão é cortado. “As pessoas não estão mais investindo em lazer. A casa que antes cobrava R$ 50 de entrada agora cobra R$ 15. E eu dependo dessa bilheteria.”
Escolhas. Quando pensa no futuro, Pati olha para a filha, Kenya – o nome foi escolhido em homenagem ao país africano. Aos 17 anos, frequenta o cursinho pré-vestibular do Educafro, voltado a afrodescendentes. Embora Kenya tenha pretensões artísticas, a mãe tem outros planos. “Seja médica, é o que digo”, diz Pati, ignorando o fato que, se a filha não for aprovada em uma universidade pública, a mensalidade do curso pode passar de R$ 5 mil. Além de pensar na educação de Kenya, terá uma nova conta em breve: Pati estuda produção cultural na FMU com ajuda do Fies, programa de financiamento do governo. Após se formar, terá prestações a pagar. “Não posso pensar nisso agora.”
Na zona leste, a filha de Orlanita, Júlia, de 15 anos, começou a trabalhar como babá. Mas a exigência da patroa ficou muito superior ao inicialmente combinado. O trabalho começou a atrapalhar os estudos. Orlanita decidiu que pode aguentar mais uns anos de dores nas costas e de malabarismo financeiro diário para ver a filha formada e falando uma língua estrangeira – a menina é boa de espanhol. Para o futuro de Júlia, Orlanita não consegue pensar em uma profissão específica. Não sabe o que dizer, as lágrimas lhe escorrem pelo rosto. “Só quero algo melhor. Só algo melhor.”
Fonte: Estadão Notícias - 13/06/2015 e Endividado
Seis e vinte da manhã no bairro Bonsucesso, em Guarulhos. Valmira Souza passa apressada pelas roupas que havia pendurado às 11 horas da noite anterior. Não pode perder a condução - o ônibus passa às 6h33. Em dias bons, às 9h está na casa da patroa, que mora em um bairro nobre da capital. Enquanto corria corredor afora, a diarista, de 39 anos, ainda não sabia que, naquela segunda-feira, a sorte não estaria a seu favor. Até o terminal Armênia, na região norte de São Paulo, seriam três horas e meia. E ainda teria de pagar o metrô e fazer duas baldeações.
Trabalhando para quatro patrões diferentes, Valmira tira R$ 1,8 mil por mês. Após 19 anos de casamento, decidiu se separar. O ex-marido, desempregado, exigiu ser ressarcido do dinheiro que gastara com o material da casa que construíram no terreno do irmão dela. O saldo entre o que Valmira tem de pagar e a pensão definida em juízo é negativo em R$ 195 ao mês. A diferença faz falta. A conta do mercado não para de subir, quatro filhos na escola, a máquina de lavar está com um barulho estranho. “Vou ter de resolver, dar um jeito. Sozinha.”
Ao longo de 2015, o brasileiro sentiu o “susto” da crise, diz André Torretta, presidente da consultoria A Ponte Estratégia, especializada na classe C. Água, luz e supermercado agora abocanham uma parcela bem maior da renda. Por isso, a nova classe média vem cortando supérfluos - iogurte, bolacha recheada, hambúrguer na praça de alimentação e cinema aos fins de semana. O carro, conquistado em suaves prestações, não raramente fica na garagem por causa do combustível caro. A intenção de consumo das famílias está no menor nível em cinco anos.
O que o consumidor sente na pele está transparente nos indicadores econômicos. Enquanto a inflação só aumenta - os alimentos subiram 4,56% de janeiro a maio, segundo o IBGE -, a renda vai no sentido contrário. O rendimento médio do trabalhador ficou em R$ 2.138 em abril, queda de 2,9% em 12 meses. A partir deste domingo, o Estado vai mostrar, em uma série de três reportagens, os efeitos da crise para famílias e empresas. Nesta edição, reuniu histórias sobre como o brasileiro está lidando com a redução da renda.
Apesar do cenário negativo, especialistas na classe média brasileira afirmam que essa população não é fatalista. “Essas pessoas sabem que atingiram um novo patamar nos últimos dez anos. E vão se virar para proteger o que conquistaram”, diz Torreta, da A Ponte Estratégia. Já Luciana Aguiar, fundadora da consultoria Plano CDE, diz que esse público conta com fortes laços de solidariedade que são um “porto seguro” em momentos de dificuldades.
Mais do que nada. Sete anos atrás, Ruth Mendonça, então com 21 anos, saiu à rua a pé com os quatro filhos, dois no colo e dois agarrados em suas roupas, em direção à casa da mãe. Na época, não sabia fazer nada - tinha engravidado aos 14 anos e sempre dependera do ex-marido. Ao pedir abrigo, precisava contribuir. Resolveu fazer as unhas das conhecidas. De mão em mão, acabou nas esmalterias dos Jardins. Agora, administra um salão a poucos passos de sua casa, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. Esmaltes expostos nas paredes amarelas, uma cadeira de cabeleireira e futuros serviços de depilação na sobreloja. “Tudo é bem simples”, diz. “Mas, quando olho para trás, acho que estou rica.”
Depois de anos em que cada dia parecia ser um degrau acima rumo a uma vida melhor, Ruth agora sente o baque da crise. Como administradora, não paga aluguel, mas dá uma comissão ao dono do imóvel. A cabeleireira tira a própria parte ao fim do dia de trabalho. Ruth fica com o que sobra: chegava a ter R$ 2 mil para ajudar no sustento da casa que divide com a mãe, o irmão e os filhos - uma “escadinha” de 12, 10, 9 e 7 anos. Mas este ano o movimento não para de cair. Agora, no fim do mês, ela tem, quando muito, R$ 1,3 mil. Embora esteja sendo obrigada a cortar gastos, não permite que a situação vire motivo para drama.
“Tem gente que só quer o lado fácil da vida. Se eu não puder ter toda a fartura, pelo menos vou ter um saco de arroz para pôr na mesa.”
Mas Ruth não vai ficar de braços cruzados. A clientela sumida, ao ser abordada na rua, assume que está difícil colocar comida na mesa e cuidar ao mesmo tempo da beleza. “Vou panfletar, mostrar nossas promoções”, diz ela. Corte de cabelo com depilação sai mais barato, tintura com pedicure também. “Não posso pensar que estou nos Jardins. Aqui, R$ 5 menos pode fazer a minha cliente voltar.”
Enquanto Ruth tenta revitalizar seu negócio, do ouro lado da cidade, no Peri Alto, zona norte, a dona de casa Silvia Fernandes faz e refaz as contas. Com R$ 1,8 mil por mês para administrar, decretou no início deste ano o fim das prestações de eletrodomésticos e das compras de roupas e calçados. “Tênis novo só quando o atual furar.” Para abrigar a família, os cômodos foram construídos morro abaixo. Sala e cozinha ficam no piso mais alto, enquanto os dois quartos e o puxadinho que o filho e a nora construíram ficam no “andar” de baixo. São nove moradores: além de Silvia, há os cinco filhos (todos homens e com nomes iniciados com a letra M), o marido, a sogra e a nora. Isso sem contar dois cães e seis pássaros. Na casa, só o marido, o filho e a sogra trabalham - a nora, operadora de caixa, foi demitida no início do ano. A explicação foi padrão: corte de custos.
Surpresa no portão. Já era noite quando Valmira virou a esquina da rua de sua casa, em Guarulhos. No portão, uma silhueta conhecida: o ex-marido, escorado na antiga moto do casal. Ela já havia depositado o pagamento do material da construção, mas ele não havia pago a pensão dos filhos. Estava cansada demais para convidá-lo para um café, preferia manter a conversa rápida. Na calçada, fizeram um acordo, sem juiz ou assinatura. Ela ficaria livre dos depósitos mensais de R$ 595 e ele não pagaria a pensão de R$ 400 por um ano. Começou ali mesmo a fazer planos para o dinheiro extra: “Vou guardar para dar entrada num barraco.”
ONDE COME UM COMEM DEZ? ISSO NÃO EXISTE MAIS
A casa da missionária Lislei sempre foi ponto de encontro; hoje, convidados surpresa para o almoço não são mais bem-vindos
A casa de Lislei Silva Santos, 53 anos, sempre um foi um ponto de encontro da vizinhança do bairro Parque Peruche, na zona norte de São Paulo. Lislei e a família não são só conhecidas como moradoras e empreendedoras – ela mantém um pequeno salão de beleza no terreno de sua residência –, mas também como pregadoras da palavra divina. Testemunha de Jeová, Lislei não raramente bate de casa em casa em uma peregrinação evangelizadora.
Durante muitos anos, os que se dispunham a abrir a porta para a palavra de Deus não raramente eram recebidos na casa de Lislei. Aos domingos, eram comuns os almoços para mais de dez convidados. Lislei entrava com a carne e as bebidas e quem era convidado (ou se convidava) trazia um tira-gosto ou uma sobremesa. “Mas o pesado sempre ficava com a gente”, lembra a cabeleireira. Durante muitos anos, o arranjo funcionou bem. Mas a crise deu um basta nas festas. “Onde come um comem dez? Isso não existe mais.” Em momentos como o atual, Lislei está priorizando a própria família.
A renda da casa caiu pela metade. O movimento do salão de beleza em que Lislei faz de tudo – tintura, limpeza de pele, manicure – está devagar, quase parando. Dali, conta ela, não saem mais de R$ 300 por mês, menos de um terço do que ganhava antes. O salário do marido, de R$ 2 mil brutos, mal dá para as despesas da casa – o casal tem duas filhas adolescentes. O pagamento das contas é com base em um rodízio. “A gente sempre teve as contas em dia. Agora, a gente paga a conta de luz em um mês e a de água no outro, para não cortarem.”
Mudança. Diante das dificuldades, Lislei resolveu mudar de profissão. Está fazendo um curso técnico de podologia na UniSant’Anna. Ainda faltam dois anos, mas ela está confiante de que, ao se formar, sua renda ficará menos volátil. “Quando era criança, meu sonho era ser bioquímica. Com esse curso, vou conseguir trabalhar na área da saúde”, diz a cabeleireira. “Os idosos precisam cuidar dos pés, não é um serviço que eles podem economizar, como o do salão de beleza.”
Enquanto não consegue concretizar a mudança, Lislei vai cortando no que pode. Mas faz uma ressalva: apesar da economia com as festas de fim de semana, nunca vai fechar as portas da casa para quem está passando necessidade. Pelo menos um prato de arroz com feijão, diz ela, sempre vai ser possível oferecer.
SOBREVIVENDO, COM UMA PEQUENA AJUDA DOS AMIGOS
Na crise, os laços de solidariedade ficam mais evidentes: ajuda vem da família e também dos vizinhos
Orlanita dos Santos foi, mais de uma vez, socorrida pela caridade de estranhos. A solidariedade, ela descobriu, vai além dos laços de sangue. Uma amiga de longa data propôs sociedade em um brechó – só para simplesmente doar-lhe o negócio ao perceber que a renda seria insuficiente para uma divisão. As vizinhas do distrito de Cangaíba, zona leste de São Paulo, constantemente se compadecem de seu desespero: os R$ 10 para a quitanda são trocados por uma pilha de roupas passadas, os R$ 20 para completar o botijão de gás viram uma limpeza rápida. Até a cadela Jade, que apareceu e foi ficando, ganhou uma madrinha para a ração e o banho. Todos ao redor de Orlanita, de certa forma, revivem com ela o momento em que sua história de prosperidade se transformaria em um revés do qual jamais se recuperaria. Até porque sempre que ela lembra o dia – 12 de março, faz questão de frisar –, não consegue conter as lágrimas, mesmo tantos anos mais tarde.
Orlanita nasceu em Jacobina, no sertão da Bahia, e desde que se lembra sonhava seguir os passos da irmã, que já morava em São Paulo. A oportunidade surgiu em 1981. A futura patroa enviou-lhe o dinheiro. Trabalhou de graça cinco meses para pagar a dívida. Passou por casas de família, pegou no pesado como soldadora e, finalmente, trabalhou 17 anos no restaurante da fabricante de eletrônicos Philco. No fim dos anos 90, quando o serviço foi terceirizado, deixou a empresa. Estava rica, nunca tinha visto tanto dinheiro junto: R$ 12 mil. Confiante no próprio talento – “sempre tive o dom da venda”, diz ela –, decidiu investir em si mesma. Foi à rua do ouro, no centro de São Paulo, e comprou um mostruário cheio de anéis, pulseiras e brincos. Tudo ia muito bem. Em questão de meses, tinha R$ 25 mil – tudo reinvestido em mercadoria. Um dia, antes de voltar para casa, resolveu passar na padaria. Precisava de um café. Havia sido seguida. Em poucos segundos, os ladrões levaram tudo. Fim de tarde do maldito 12 de março de 1999.
Então com 40 anos, Orlanita se viu sem nada. A confiança deu lugar à depressão. Só não desistiu de vez porque descobriu que estava grávida. Foi mãe aos 41 anos. A preocupação constante com as dívidas acabou com o casamento, o trabalho pesado no restaurante rendeu-lhe hérnias de disco e corroeu-lhe os ossos do quadril – está na fila do SUS por uma prótese há oito anos. Mesmo com dores constantes, trabalha duas vezes por semana na casa de uma família para pagar R$ 800 do aluguel. Recebe R$ 112 de Bolsa Família e o que ganha com o brechó vira comida. Na quinta-feira em que recebeu a reportagem do Estado, havia dado sorte: faturara o suficiente para encher uma sacola de frutas e verduras e uma bandeja de ovos. Não precisaria, pelo menos por um dia, recorrer à compaixão de conhecidos.
Contas. “Confia em mim.” Era tudo o que Patricia Limeira, Pati Biba para os amigos, podia dizer ao dono do mercadinho próximo à sua casa, no bairro do Jabaquara, zona sul de São Paulo. Não tinha como prometer que pagaria na próxima semana ou no mês que vem. Meses se passaram sem que Pati fechasse um único show. A produtora musical que antes conseguia cobrar R$ 12 mil para uma apresentação de um conjunto de samba – recebendo 20% de comissão –, agora em sequer fechava um evento em troca da bilheteria. As contas se avolumaram. Percorria a cidade atrás de casas noturnas interessadas em seus shows com o dinheiro contado para o ônibus – R$ 7 para ir e voltar. “Saía de manhã e só comia à noite, em casa.”
Nos bons tempos, três ou quatro anos atrás, Pati chegava a tirar R$ 6 mil por mês. Em vez de contar o dinheiro da condução, circulava de carro. Comprava calça de marca no shopping e não se preocupava em negociar a conta do mercado. Não precisava depender da ajuda dos pais, Jorge e Ruth, proprietários da casa onde mora. “Acho que esse tempo bom não volta mais”, conforma-se. A venda do carro e pequenos shows que finalmente conseguiu fechar ainda não foram suficientes para as contas ficarem totalmente em dia. Pati sentiu na pele que, na crise, o gasto com diversão é cortado. “As pessoas não estão mais investindo em lazer. A casa que antes cobrava R$ 50 de entrada agora cobra R$ 15. E eu dependo dessa bilheteria.”
Escolhas. Quando pensa no futuro, Pati olha para a filha, Kenya – o nome foi escolhido em homenagem ao país africano. Aos 17 anos, frequenta o cursinho pré-vestibular do Educafro, voltado a afrodescendentes. Embora Kenya tenha pretensões artísticas, a mãe tem outros planos. “Seja médica, é o que digo”, diz Pati, ignorando o fato que, se a filha não for aprovada em uma universidade pública, a mensalidade do curso pode passar de R$ 5 mil. Além de pensar na educação de Kenya, terá uma nova conta em breve: Pati estuda produção cultural na FMU com ajuda do Fies, programa de financiamento do governo. Após se formar, terá prestações a pagar. “Não posso pensar nisso agora.”
Na zona leste, a filha de Orlanita, Júlia, de 15 anos, começou a trabalhar como babá. Mas a exigência da patroa ficou muito superior ao inicialmente combinado. O trabalho começou a atrapalhar os estudos. Orlanita decidiu que pode aguentar mais uns anos de dores nas costas e de malabarismo financeiro diário para ver a filha formada e falando uma língua estrangeira – a menina é boa de espanhol. Para o futuro de Júlia, Orlanita não consegue pensar em uma profissão específica. Não sabe o que dizer, as lágrimas lhe escorrem pelo rosto. “Só quero algo melhor. Só algo melhor.”
Fonte: Estadão Notícias - 13/06/2015 e Endividado
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