domingo, 28 de junho de 2015

O Tráfico Negreiro

Embora a escravidão seja uma instituição quase tão velha quanto a própria humanidade, jamais o tráfico de escravos fora um negócio tão organizado, permanente e vultoso quanto se tornou depois que os portugueses estabeleceram, no início do século 16, uma vasta rota triangular que uniu a Europa, a África e a América e transformou milhões de negros em lucrativa moeda de troca. Manufaturas europeias eram levadas para a Guiné e cambiadas por escravos em entrepostos costeiros. Os mesmos navios partiam em seguida conduzindo em seu porões aldeias inteiras para trabalhar até a morte nas plantações do Brasil. Uma vez no Novo Mundo, esses escravos em geral não eram vendidos trocados por açúcar – revendidos, a seguir, com grande lucro na Europa. A fórmula cedo pôde incluir a Ásia, já que os panos coloridos feitos em Goa, na Índia, passaram a ser mercadoria oferecida nas feitorias da Guiné. Mas o pioneirismo luso foi logo ameaçado pela concorrência dos holandeses, ingleses e espanhóis. No século 17, se já não eram os maiores traficantes de escravos, britânicos e holandeses eram os que mais lucravam com ele.
No século seguinte, porém, brasileiros e lusos radicados no Brasil se tornariam os maiores e mais eficientes traficantes da história. Utilizando-se da cachaça e do tabaco de terceira – baratos e abundantes no Brasil, e apreciadíssimos na África –, criaram um circuito comercial espantosamente eficiente e rendoso. Embora capturado cada vez mais no interior do continente africano, os escravos iam ficando cada vez mais baratos, à medida que aumentava o interesse pelo fumo e pela aguardente. Os postos de captura e troca de escravos logo se espalhavam por quase toda a África negra, incluindo Moçambique e outros portos do Índico. O mercado de carne humana floresceu plenamente até 1815, quando, sentindo-se prejudicada pelo tráfico, a Inglaterra decidiu proibi-lo.
A quem se deve o pioneirismo do tráfico na Europa do início da Era Moderna? Os historiadores ainda discutem o tema, embora muitos deles atribuam ao longo período de denominação moura na península ibérica o hábito de escravizar outros povos e raças, logo adotado por lusos e castelhanos. Os primeiros escravos negros ter chegado a Portugal em 1441, a bordo da nau com a qual antão Gonçalves retornou da Guiné. De início, houve restrição real à escravização de africanos – utilizados apenas em serviços domésticos, e com moderação. Com o início da lavoura canavieira nos Açores e em Cabo Verde, a escravidão, mais que tolerada, passou a ser incentivada. E não apenas além-mar: “Os escravos pululam por toda parte”, escreveu o cronista Nicolau Clenardo, em 1502. “Tanto que, quero crer, são, em Lisboa, mais que os portugueses de condição livre”.
A mais antiga referência à importação de africanos para o Brasil é encontrada num documento escrito em São Vicente, em 3 de março de 1533, no qual Pero de Góis pede ao rei “17 peças de escravos, forros de todos os direitos e frete que saem pagar”. Em 1539, Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, repete o pedido, insistindo também na isenção de impostos. Pelo alvará de 29 de março de 1559, o rei D. Sebastião decidiu, enfim, “fazer mercê àqueles que tinham construído engenhos no Brasil”, permitindo-lhes “mandar resgatar ao rio e resgates do Congo e trazer de lá para cada um dos ditos engenhos até 120 pessoas de escravos resgatadas à sua custa”.
Estava iniciado o tráfico em grande escala. Em breve se encerraria o chamado ciclo da Guiné, iniciando-se o de Angola. Em 1585, segundo uma informação do padre José de Anchieta, hoje considerada um exagero, já eram 120 mil os escravos africanos vivendo – e cedo morrendo – em Pernambuco. De qualquer modo, era apenas o início.
Preocupados com os índios, que morriam como moscas n~~ao apenas por sua absoluta impossibilidade de adaptação ao regime do trabalho forçado como também pelos surtos epidêmicos que grassavam nos aldeamentos, os jesuítas foram os primeiros a incentivar o tráfico de africanos para o Brasil. Melhor adaptados ao modo de produção agrícola e ao trabalho organizado, os negros se revelaram, de início, uma opção superior para os senhores de engenho. O negócio, porém, cedo se mostrou muito melhor para os traficantes: trocados por fumo e cachaça, os escravos eram baratos na África. Como o açúcar feito no Nordeste era levado para a Europa nos mesmos navios que traziam escravos da África, os negreiros forçavam os engenhos a adquirir novos escravos sob pena de não comprarem sem açúcar. Assim, os senhores de engenho logo se endividaram.
De qualquer forma, um escravo se “pagava” em cinco anos. Melhor para seus senhores: devido aos maus-tratos frequentes, à jornada de trabalho nunca inferior a 18 horas diárias, às péssimas condições de alojamento e às rações criminosamente exíguas, os escravos em média, não sobreviviam mais do que sete anos no Brasil. Mas como um “peça da África”, custava cerca de 50 mil réis, até mesmo portugueses pobres podiam ter pelo menos uma. E de fato tinham: não ter escravos no Brasil era considerado alto tão humilhante que, dentre os raros adventícios que não conseguiam adquirir o seu, muitos preferiam voltar para o reino.
O preço baixo e a facilidade de substituir as “peças” explicam por que, entre as duas opções que dividiam os senhores escravos – “deve-se criá-los ou comprá-los?” -, os brasileiros sempre optaram pela segunda. A mortalidade infantil também era assustadoramente alta entre os escravos – isso quando eles conseguiam “reproduzir em cativeiro”, já que o número mulheres trazidas da África foi cinco vezes menor do que o dos homens.
A máquina escravocrata que se estabeleceu primeiro nos engenhos (que “gastavam” cerca de 200 escravos por ano, cada) e depois de minas das Gerais, associada ao costume de substituir” escravo morto pelo moribundo seguinte, transformou o Brasil na maior nação escravagista do Novo Mundo – e a mais dependente de escravos. As consequências econômicas, políticas, morais e sociais foram enormes.
Na África, lavradores e aldeões eram capturados aos milhares por caçadores de homens, que, em geral, utilizavam os mesmos métodos empregados pelos traficantes berberes. Os cativos eram então conduzidos às feitorias à beira mar e, a seguir, embarcados para o Novo Mundo. No século 17, encerrado o ciclo da Guiné, começa o ciclo de Angola, durante o qual cerca de 600 mil escravos foram trazidos para o Brasil. Eram bantos: congos (ou cabindas), benguelas e ovambos e foram introduzidos em Pernambuco e no Rio de Janeiro, de onde partiram para Minas Gerais e São Paulo. No alvorecer do século 18, inicia-se o clico da Costa da Mina (hoje Benin e Daomé), durante o qual cerca de 1,3 milhão de escravos foram trazidos para o Brasil.
Nesse período, os povos escravizados eram sudaneses: iorubás (ou nagôs), geges (ou daomeanos), minas, hauçás, tapas e bornus. Nessa época, os traficantes lusos, holandeses, espanhóis e ingleses já haviam sido amplamente superados pelos brasileiros. O ciclo da Costa da Mina perdurou até 1815, quando o tráfico de escravos no Atlântico passou a ser duramente reprimido pela Inglaterra. De 1815 até 1951, mesmo ilegal, o tráfico persistiu e, de acordo com alguns estudiosos, em quantidades e condições ainda mais amedrontadoras que antes.
Na terceira e quarta fases do tráfico, era o Rio e não mais Salvador o grande centro escravagista brasileiro. Os escravos eram desembarcados no porto, pagavam impostos como qualquer mercadoria (cerca de 3 mil-réis, ou 5% de seu valor) e eram posto à venda nos mercados na rua Valongo (hoje Camerino, no Centro da cidade). Lá permaneciam “nus, cabelos raspados, parecendo objetos medonhos (…) marcados com ferro quente no peito (…) cobertos de feridas e extensas e corrosivas (…) com fisionomias estúpidas e pasmas”, esperando comprador. Até mulheres “iam às compras”: “Vão enfeitadas”, escreveu o inglês Robert Walsh, em 1828, “Sentam-se, manipulam e examinam suas compras, e levam-nas embora com a mais perfeita indiferença, como se estivessem comprando um cão ou uma mula”.
A preferência recaía nos negros “minas”: os bantos eram considerados mais fracos e suscetíveis a doenças. Poucos, porém, completariam uma década trabalhando no Brasil.


Fonte: História do Brasil (1996), páginas 74 e 75.

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