domingo, 7 de junho de 2015

O mapa da mina

Por 200 anos, mais do que uma obsessão, o ouro – ou a ausência dele – fora uma maldição para os portugueses que viviam no Brasil. Ao contrário do que acontecia nos territórios conquistados pela Espanha, não havia, na terra do pau-brasil, “coisa de metal algum” como, em 1502, diagnosticara Américo Vespúcio. O padrinho do Novo Mundo fora mais cético do que o primeiro cronista do Brasil. Em abril de 1500, ao redigir sua carta para o rei D. Manuel, Pero Vaz de Caminha revelava toda a esperança dos descobridores em achar o “fulvo metal” na terra nova: o simples fato de um indígena ter olhado para o colar de ouro que ornamentava o peito de Cabral e, em seguida, apontar para as montanhas, foi tomado como sinal inequívoco de que, naquelas serrarias, deveria haver ouro, muito ouro.
A ilusão perduraria por dois séculos – e reclamaria muitas vidas antes de se tornar uma espantosa realidade.
Embora algumas pepitas tenham sido encontradas no sopé do pico do Jaraguá, em São Paulo, em 1590, e certos ribeiros do litoral do Paraná revelassem areia aurífera, o fato é que, até 1693, no Brasil quase nada do que refulgia era ouro – com exceção, é claro, da pedra conhecida como o “ouro de tolos”, a pirita. No entardecer do século 17, porém, Portugal e Brasil se encontravam numa crise financeira tão profunda que, em 1674, o próprio regente Pedro II (Coroado rei em 1683) escrevera aos “homens bons” da vila de São Paulo encorajando-os a partir para o sertão em busca de metais. Não dissera, em 1519, o capitão Hernán Cortez ao imperador asteca Montezuma que os espanhóis sofriam de uma “doença do coração que só o ouro pode curar”? Um século e meio mais tarde, Portugal e o Brasil estava de tal forma enfermos que só um Eldorado poderia salvá-los. Pois ele existia e logo seria achado - embora trouxesse outras moléstias.
Alguns historiadores acham que não se devem desconsiderar “os efeitos psicológicos” que as missivas reais teriam exercido sobre os 11 sertanistas que as receberam. Mas o fato é que aos bandeirantes de São Paulo não restava outra forma de manter suas vidas nômades senão caçando ouro: seus currais indígenas estavam esgotados. Ao rei também não sobrava outra opção: anos antes, enquanto perdurava a União Ibérica, foram enviados da corte especialistas em minas para estudar as potencialidades minerais do Brasil. O único deles que resistiu às agruras do sertão – o espanhol Rodrigo Castelo Branco – foi assassinado por Borba Gato, genro de Fernão Dias, assim que chegou à mina que o “caçador de esmeraldas” acabara de descobrir. Depois desse crime sem castigo, quem não fosse bandeirante e paulista não se arriscaria a percorrer os ermos do Brasil. Aos paulistas caberia a façanha de encontrar a maior jazida de ouro já descoberta no mundo. Mas não seriam eles que lucrariam com ela.
A discussão acadêmica sobre qual o primeiro ouro descoberto nas Gerais é tamanha que não restam dúvidas de que os achados foram simultâneos, o que indica também que havia várias expedições percorrendo a serra da Mantiqueira e os valores dos rios das Velhas e das Mortes em busca do metal. Borba Gato teria sido o primeiro a achar ouro, mas, após o crime de lesa-majestade que cometera, fora obrigado a se esconder em matos remotos. Em 1693, por sua vez, chegava ao Espírito Santo o paulista Antônio Ruiz de Arzão “com 50 e tantas pessoas, entre brancos e carijós domésticos de sua administração, todos nus e esfarrapados, sem pólvora ou chumbo”: vinham do sertão de Minas, onde, durante a caça aos escravos, haviam sido duramente atacados por ferozes cataguás. A expedição, porém, fora vitoriosa: entre os trapos que o cobriam, Arzão trazia 10 gramas de ouro. Impossibilitado de voltar ao sertão, deu o mapa da mina para o concunhado, Bartolomeu Bueno de Siqueira, que, pouco antes, perdera toda a sua herança no jogo. Siqueira partiu no rumo indicado e em janeiro de 1695 se viu obrigado a informar ao governador do Rio, Castro Caldas, que o ouro não era mais uma miragem: a “grandeza das lavras” e a “fertilidade das minas” eram evidentes. Em fins de 1696, já se contavam aos milhares os paulistas que saíam de Taubaté (ponto de partida de Arzão e Siqueira) rumo ao “sertão dos Categuases”, do outro lado da Mantiqueira. A jornada até as minas durava cerca de dois meses e meio e o roteiro conduzia de Taubaté a Lorena (via Guaratinguetá). Do vale do Rio Paraíba, cruzavam-se a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú atingindo-se, então, os três principais polos mineradores: nas nascentes do Rio das Mortes, tendo por centro São João del Rei; na região de Ouro Preto e Mariana, na serra do Tripuí, e no Sabará e sua vizinha Caetê. Em 1699, Garcia Paris (filho de Fernão Dias), abriu um caminho bem mais curto, que conduzia do Rio de Janeiro às minas em 14 dias. Nessa época, a região já populava com toda a espécie de aventureiros: levas de peregrinos que partiam de todos os os contos do Brasil, “os mais pobres deles só com suas pessoas e seu limitado trem às costas”.
De acordo com um cronista, eram “indivíduos tão alucinados que, vindos de distância de 30 ou 40 dias de jornada, partiam sem provimento algum – assim, pelo caminho, muitos acabaram de irremediável inanição e houve quem matasse o companheiro para lhe tomar uma pipoca de milho”. Um grande surto de fome assolou as minas em 1697-98. Muitos mineiros, com os alfajores cheios de ouro, morreram sem encontrar um pedaço de mandioca, pelo qual dariam uma pepita. Mas os horrores da fome seriam apenas os primeiros a cometer o efervescente sertão dos cataguás e as fulgurantes “minas de Taubaté”. Novas desgraças estavam sendo fermentadas.


Ouro branco! Ouro preto! Ouro pobre! De cada ribeirão trepidante e de cada montanha, o metal rolou na cascalhada para fauto d'El-Rei, para glória do imposto. Manoel Bandeira.
Manoel Bandeira.


Fonte: História do Brasil (1996), página 66.

Nenhum comentário:

Postar um comentário