“Minha mais íntima
prioridade, a primeira, é que o espírito do meu avô renasça em
mim e que me faça ser um cristão, um servidor de Cristo.”
Vicent van Gogh,
1879-80
Não se sabe ao certo
qando Théo van Gogh percebeu que por detrás das doidices e
bizarrias do seu irmão Vicent, quatro anos mais velho do que ele,
ocultava-se um gênio das artes. Talvez quando começaram a sua
intensa correspondência, ao redor de 1872. Filhos de um pastor da
igrejja holandesa reformada, nascidos nos grotões da Holanda,
praticamente eram irmãos siameses: a dor de um era o sofrimento do
outro. Vicent tentara de tudo na vida: de atendente de livraria a
pregador evangélico. Um fracasso completo. Depois de um dos tantos
desencantos amorosos que sofreu, teve um crise mística que o fez
deixar Londres e embrenhar-se em Borinage, na zona carbonífera
belga, para ir levar a palavra divina aos mineiros.
Lá imaginou-se Jesus,
dormindo sobre palhas e mastigando pão duro, levando uma existência
sofrida o mais próximo possível de uma expiação. Seus superiores
acharam que aquilo era demais e o dissuadiram da carreira
ministerial. Nesta ocasião, ele fez o esboço dos Comedores de
Batatas (depois célebre retrato que se firmará como uma espécie
de Santa Ceia dos Trabalhadores). Sim, porque em todas as ocasiões,
como se fosse um possuído, ele não parava de desenhar.
Théo, por sua vez,
empregado na Galeria Goupil em Paris, desde 1880 passou a
sustentá-lo. Ao redor dos 30 anos, a aparência de Vicent era
medonha. Seus cabelos vermelhos curtos, seus dentes estragados e suas
roupas de mendigo compunham um visual de dar medo, assustador. A isso
somava-se o seu temperamento esquisito. Van Gogh era um ouriço.
Irritava-se com tudo e com todos, sofrendo surtos pavorosos de
demência (supõe-se que resultante da sífilis e do alcoolismo), o
que condenou à solidão, a expressar-se cada vez mais pelas
gravuras.
Entrementes, nos
campos da França assistia-se a uma revolução. Não pelas armas
pelas paletas e tintas. Chamados jocosamente de !impressionistas”,
uma nova geração de artistas, rompidos com a arte acadêmica, tomou
as aldeias e vilarejos de assalto. Pintavam o que viam. As
plantações, as flores e árvores, as nuvens, as pontes, as
choupanas do povo miúdo, os camponeses empilhando o feno ou arando
as terras etc. As cores, fortes ou fracas, eram dadas diretamente
pela intensidade do sol ou pela ausência dele. Viviam na
necessidade, alguns beiravam a miséria.
Não demorou para que
Van Gogh, abandonando em 1887, o apartamento do irmão na Rua Lépic,
nº54, em Montmartre, em Paris, se juntasse a esses apóstolos das
cores, indo para Arles no sul da França, região onde o sol era
intenso. Arrastou consigo Paul Gauguin, que antes havia se fixado em
Port-Aven na Bretanha, liderando uma tribo de uns 20 artistas
impressionistas. Foi então que deu-se a explosão da sua paixão
pelo amarelo, cor do ouro, do trigo, a cor de Apolo.
Théo, entrementes,
com pouco sucesso, fazia de tudo para vender as telas daqueles pobres
loucos. Vicent transformara a pintura numa missão. Nada mais cristão
para ele do que retratar os humildes e só simples em suas funções
e a natureza fulgurante, viva e móvel que os cercava. Surgiu como se
investido, como se um profeta pintor produzisse um Sermão da
Montanha com pincel e tintas.
Anos depois do
suicídio dele, ocorrido em Auvers-sur-Oise, em 29 de julho de 1890,
quando pôs fima a sua vida dolorosa, seu sobrinho registrou que sua
mãe, Jo Van Gogh-Bonger, a viúva de Théo (que morreu seis meses
depois do irmão), tinha numa casa em que alugara em Bussum, no
interior da Holanda, as paredes repletas com as obras-primas de
Vicent. Hoje, somente quatro delas estariam avaliadas entre US$ 250
milhões e US$ 300 milhões! A ela é que se deve a primeira
exposição de 473 obras de Van Gogh no Museu Municipal de Amsterdã,
realizada em 1905. Fará um século em julho do ano vindouro. Duas
mil pessoas acorreram para vê-las. Ainda riram das telas dele.
*Historiador
Fonte: Zero Hora,
página 17 de 18 de julho de 2015.
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