sábado, 6 de junho de 2015

O apóstolo das cores, por Voltaire Schilling*

Minha mais íntima prioridade, a primeira, é que o espírito do meu avô renasça em mim e que me faça ser um cristão, um servidor de Cristo.
Vicent van Gogh, 1879-80

Não se sabe ao certo qando Théo van Gogh percebeu que por detrás das doidices e bizarrias do seu irmão Vicent, quatro anos mais velho do que ele, ocultava-se um gênio das artes. Talvez quando começaram a sua intensa correspondência, ao redor de 1872. Filhos de um pastor da igrejja holandesa reformada, nascidos nos grotões da Holanda, praticamente eram irmãos siameses: a dor de um era o sofrimento do outro. Vicent tentara de tudo na vida: de atendente de livraria a pregador evangélico. Um fracasso completo. Depois de um dos tantos desencantos amorosos que sofreu, teve um crise mística que o fez deixar Londres e embrenhar-se em Borinage, na zona carbonífera belga, para ir levar a palavra divina aos mineiros.
Lá imaginou-se Jesus, dormindo sobre palhas e mastigando pão duro, levando uma existência sofrida o mais próximo possível de uma expiação. Seus superiores acharam que aquilo era demais e o dissuadiram da carreira ministerial. Nesta ocasião, ele fez o esboço dos Comedores de Batatas (depois célebre retrato que se firmará como uma espécie de Santa Ceia dos Trabalhadores). Sim, porque em todas as ocasiões, como se fosse um possuído, ele não parava de desenhar.
Théo, por sua vez, empregado na Galeria Goupil em Paris, desde 1880 passou a sustentá-lo. Ao redor dos 30 anos, a aparência de Vicent era medonha. Seus cabelos vermelhos curtos, seus dentes estragados e suas roupas de mendigo compunham um visual de dar medo, assustador. A isso somava-se o seu temperamento esquisito. Van Gogh era um ouriço. Irritava-se com tudo e com todos, sofrendo surtos pavorosos de demência (supõe-se que resultante da sífilis e do alcoolismo), o que condenou à solidão, a expressar-se cada vez mais pelas gravuras.
Entrementes, nos campos da França assistia-se a uma revolução. Não pelas armas pelas paletas e tintas. Chamados jocosamente de !impressionistas”, uma nova geração de artistas, rompidos com a arte acadêmica, tomou as aldeias e vilarejos de assalto. Pintavam o que viam. As plantações, as flores e árvores, as nuvens, as pontes, as choupanas do povo miúdo, os camponeses empilhando o feno ou arando as terras etc. As cores, fortes ou fracas, eram dadas diretamente pela intensidade do sol ou pela ausência dele. Viviam na necessidade, alguns beiravam a miséria.
Não demorou para que Van Gogh, abandonando em 1887, o apartamento do irmão na Rua Lépic, nº54, em Montmartre, em Paris, se juntasse a esses apóstolos das cores, indo para Arles no sul da França, região onde o sol era intenso. Arrastou consigo Paul Gauguin, que antes havia se fixado em Port-Aven na Bretanha, liderando uma tribo de uns 20 artistas impressionistas. Foi então que deu-se a explosão da sua paixão pelo amarelo, cor do ouro, do trigo, a cor de Apolo.
Théo, entrementes, com pouco sucesso, fazia de tudo para vender as telas daqueles pobres loucos. Vicent transformara a pintura numa missão. Nada mais cristão para ele do que retratar os humildes e só simples em suas funções e a natureza fulgurante, viva e móvel que os cercava. Surgiu como se investido, como se um profeta pintor produzisse um Sermão da Montanha com pincel e tintas.
Anos depois do suicídio dele, ocorrido em Auvers-sur-Oise, em 29 de julho de 1890, quando pôs fima a sua vida dolorosa, seu sobrinho registrou que sua mãe, Jo Van Gogh-Bonger, a viúva de Théo (que morreu seis meses depois do irmão), tinha numa casa em que alugara em Bussum, no interior da Holanda, as paredes repletas com as obras-primas de Vicent. Hoje, somente quatro delas estariam avaliadas entre US$ 250 milhões e US$ 300 milhões! A ela é que se deve a primeira exposição de 473 obras de Van Gogh no Museu Municipal de Amsterdã, realizada em 1905. Fará um século em julho do ano vindouro. Duas mil pessoas acorreram para vê-las. Ainda riram das telas dele.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, página 17 de 18 de julho de 2015.

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