quarta-feira, 17 de junho de 2015

Nebrija e o império do idioma, por Voltaire Schilling*


A língua sempre foi companheira do império
Antônio de Nebrija à rainha Isabel de Espanha, 17/07/1492

O ano de 1492 ficou memorável na história da Espanha. Os reis católicos Fernando e Isabel não só conquistaram a Alhambra, o último reduto dos mouros em Granada, como Cristóvão Colombo, a serviço deles, alcançou o Novo Mundo. Por igual foi a ocasião em que a rainha Isabel “senhora natural de Espanha e das ilhas do nosso mar”, recebeu uma histórica carta vinda de Salamanca, com a data de 17 de agosto de 1492.
Remetera-a um famoso gramático castelhano, o humanista Antônio Cola Xarana, conhecido como Antônio de Nebrija, um andaluz dotadíssimo para o estudo das letras. Cansado de ver o belo idioma de Castela destratado e mal escrito, cada súdito inventando uma maneira própria de escrever , decidira-se pôr um fim naquela anarquia ortográfica. Para tanto, passara alguns bons anos da sua vida de acadêmico da prestigiosa Universidade de Salamanca, a Sorbonne dos espanhóis (fundada em 1218), a redigir um compêndio gramatical que fizesse cessar os danos ao idioma. A intenção era fixar normas e dar ao castelhano consistência para facilitar o aprendizado do latim.
Chegara a hora da edição, num só tomo, dos seus cinco livros e 55 capítulos. Era isso que ele comunicava à rainha, a quem ele consagrava a sua Gramática de la Lengua Castellana. Algo tão grandioso como as velhas catedrais da Espanha.
Naquela época, as línguas neolatinas conhecidas na Ibéria eram genericamente derivadas do que entendiam ser o romance: uma evolução do latim vulgar. Historiando para a soberana a crônica dos idiomas, Nebrija observou que é no apogeu do poder imperial que eles se firmam. É no esplendor de um trono que a fala se fortifica.
Nunca o hebraico fora tão vigoroso como com Moisés, o mesmo dando-se com o grego depois da Guerra de Troia e com o latim nos tempos de César e Augusto, ocasião em que Cícero, Lucrécio, Virgílio, Horácio, Ovídio e Tito Lívio. Exercitaram-no em prosa e verso.
Todavia a chegada das palavras escritas à Ibéria, lembrou ele à soberana, não deveu-se nem a gregos muito menos aos cartaginenses, mas sim às legões romanas. O duro linguajar dos acampamentos, alterando-se aos poucos, ganhou direito de ir assentar-se nas vilas e nos lares da Espanha. Nem as invasões dos godos (a partir de 410), nem a longa ocupação dos mouros (711-1492) conseguiram remover dos iberos o idioma que haviam adotado como seu.
O momento que ele escolhera para lançar sua obra não poderia ser melhor. Exatamente quando a Espanha dava um passo final para sua unidade política, o humanista oferecia à Coroa um poderoso instrumento de integração cultural: uma gramática.
Nebrija expôs que a missão que ele escolhera não só oferecer aos espanhóis instruídos uma leitura para suas horas de ócio, mas sim um tratado de gramática “que se estendesse por toda a duração dos tempos que ainda estão por vir”. A ambição dele era fazer com que o castelhano perdurasse pelos tempos afora do mesmo modo que o grego e o latim. Idiomas que, por mais que os séculos corressem, mantinham um padrão quase inalterado.
Palavras proféticas. Desde então, refinado pelo cultivo dos poetas e dos literatos do México, da Colômbia, do Chile, da Argentina, e de tantas outras partes da América Hispânica, definido como belo, forte e varonil, o idioma de Cervantes cresceu para todos os lados. A língua que Nebrija celebrou no presente é falada por 350 milhões de pessoas em vários cantos do mundo. É a mais dinâmica e irreverente das que descendem do antigo Lácio.

*Historiador


Fonte: Zero Hora, 15 de agosto de 2004.

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