sábado, 6 de junho de 2015

Napoleão e a Egiptologia

Acreditam que o Império do Oriente e talvez a sujeição de toda a Ásia não valem uma bombacha e um turbante?” - Napoleão Bonaparte – 1798

Os preparativos para a expedição

      M.me. Monge exasperou-se. Não podia imaginar o seu Gaspard metido nos areais do Egito, assolado pelo frio noturno e pela incandescência diurna do Sol do deserto. Mas o jovem general Bonaparte insistia. Gaspard devia acompanhá-lo. Monge era um matemático celebérrimo e Napoleão não podia dispensá-lo da aventura que planejara. Convencida, Cathérine Huart, a esposa do Monge, concordou por fim que ele partisse. Assim como Monge, outros 166 sábios foram arrebatados pelo entusiamo do comandante, entre eles o químico Berthollet, o geólogo Dolomieu, o físico Fourier, Mechain, um técico em lunetas, e o grande naturalista Geoffrey de Saint-Hilaire. Até um aeróstata, Nocolas Conté, e um poeta chamado Parceval de Grandmaison embalaram-se. Contagiou Napoleão inclusive a École Polytechnique – a hoje celebrada Poly – inteira.
O governo do Diretório levantou as mãos aos céus por se ver livre daquele general de 29 anos com a ambição de um César. O jovem titã desembarcou da sua nau capitania, o L'Orient, em Alexandria, no Egito, no dia 1º de julho de 1798 – 40 dias após a sua partida do sul da França. Supõe-se que o lugar do desembarque dos regimentos de Bonaparte não distou muito dos das legiões de Pompeu, das de César e, depois, das de Otávio, que, quase 2 mil anos antes do conquistador francês haviam levado para aquele grande país as desavenças políticas da Roma Republicana.
A expedição militar francesa compunha-se de 300 navios e 35 mil soldados, além, naturalmente, do seu departamento de sábios. Devido à atenção que os cientistas mereciam da parte de Napoleão, não demorou muito para que os oficiais do Exército, ciumentos, apelidassem a corte de sábios de “amante favorita do general”. Daí entender-se a preocupação que Bonaparte teve para com eles, para com os cientistas, quando, na sua marcha para o Cairo, deu a cômica mais necessária ordem: les bêtes et les savant au demí! (os burros e os sábios no meio!), dita um pouco antes dele se deparar com as tropas inimigas na Planície de Guizé.
A estratégia de Napoleão ao atacar o Egito era atrair a Inglaterra para fora das Ilhas Britânicas, bloqueando-lhe o contato com seu império indiano. Azucriná-la bem longe de casa era sua meta. Evidentemente que o jovem general imaginava-se um outro Alexandre, tão moço e tão audacioso como ele. Napoleão – tal como o conquistador macedônio (que levara, em 334 a.C., um conjunto de especialistas e de filósofos gregos para estudar o Oriente) – queria somar à conquista militar os ganhos científicos que iria revelar ao mundo. Ao abrir o Egito aos olhos da Razão, esmiunçando-o com as lentes cartesianas, a ciência europeia iria afastar as milenares teias de aranha e o pó sagrado que envolviam
o passado daquele magnífico país, classificando os achados e recompondo-os pelo crivo crítico das Luzes.
Na época do Renascimento, muitos pensadores e filósofos, como Marcílio Ficino e Giordano Bruno, sentiam-se atraídos pelo seu mistério, pela escrita hermética que se acreditava provir de lá e pelos seus indecifráveis hieróglifos (tidos por muito como alfabeto de Deus). Nada disso desejava Napoleão. Nem mistérios, nem catar almas danadas vagando pelas tumbas ilustres, nem tentar desvendar segredos insolúveis. Isso era coisa para hierofantes e para místicos. Orientou seus sábios para que tudo o que fosse encontrado nas areias e nas tumbas do Egito fosse arrolado, estudado e classificado segundo os últimos recursos da ciência. Fugia-se da superstição e do ocultismo. Acreditavam os cientistas que aquilo que não se sabia no momento seguramente seria revelado no futuro. A Razão é paciente e perseverante.

A inspiração da expedição

A inspiração direta para a expedição ao Oriente Médio viera-lhe de uma obra que o impressionara: a “Voyage em Égypte et em Syrie”, do Conde de Volney, editada em dois volumes em 1787. Na época, Napoleão era um tenente pobre, mas visionário. Não seguiu Volney, no entanto, na sua indisposição anti-islâmica. Ao chegar ao Egito, na Proclamação aos Muçulmanos, afirmou: “nous sommes les vrais musulmans!” (nós somos os verdadeiros muçulmanos!)
Napoleão entendia que era uma rematada loucura indispor-se com a imensa população local por motivos de fé. Havia que respeitá-los. Surpreendeu seus próximos quando, no Cairo, trajando-se como se fora um xeque, um chefe do divã, de turbante e tudo, enfiou-se em longas conferências com os líderes religiosos islâmicos, orientando os imãs, os muftis e os ulemás para que interpretassem o Corão a seu favor. Proclamou-se cheik El Beled, o grande xeque do Egito, e émir Hagi, o encarregado e protetor dos peregrinos, cuidando para que todos os seus decretos fossem traduzidos para a língua árabe.
Depois de ter dado sovas na cavalaria mameluca, espantando-a a canhonadas – na célebre Batalha das Pirâmides – ele mesmo não resistiu em participar de algumas expedições. Em dezembro de 1798, na companhia dos sábios, Napoleão rumou para o Sinai, atrás do antigo Canal dos Faraós. Curiosamente, o relatório que o engenheiro-chefe J-M Père fez naquela época sobre os vestígios da desaparecida artéria também caiu nas mãos dos ingleses. Décadas depois, o diplomata Ferdinand de Lesseps, quando era cônsul da França, na cidade de Alexandria, em 1832, inspirou-se naquela exposição feita pelo seu compatriota para construir o Canal de Suez (inaugurado em 1869). Desde que vira a planta feita por J-M Père, Lesseps fora possuído pela ideia de reconstruir aquela artificial passagem soterrada nas areias do Sinai.

O início da Egiptologia

Em um só ano, a equipe dos sábios franceses tinha levantado enorme material. A tal ponto que Napoleão decidiu-se por fundar lá mesmo, em agosto de 1799, o Institut d'Egypte. Dividido em quatro seções, a função da instituição seria a publicação dos achados e tudo o mais que lhe dissessem respeito. Para tanto, escolheu como sede o mais belo palácio do Cairo, o Hassan Cachef, que se tornou o berço da moderna egiptologia. O próprio Napoleão inscreveu-se como membro do Departamento de Matemática.
Uma das maiores contribuições da expedição à ciência, entretanto, só iria revelar-se bem mais tarde, quando o próprio império napoleônico já tinha desaparecido. Em 1799, um soldado francês, deambulando perto da aldeia de Rosetta, encontrara uma estranha pedra. Descobriu-se que era um decreto de Ptolomeu V Epifanes (210 – 180 a.C. ) e que estava calcado em três línguas: o hieróglifo, o demótico e o grego. Mas ninguém, naquele momento, conseguiu decifrá-lo. Os ingleses se apoderam da pedra quando os franceses capitularam em 1801, levando-a para o Museu Britânico.
Coube a Jean-François Champollion, de apenas 32 anos, traduzi-la em 1822. ele, um gênio da filologia, dominava seis antigos idiomas orientais, fora o grego e o latim. Dois anos depois, em 1824, ele concluiu o seu “Précís du système hièrolyphique des anciens égyptiens”, que tornou-se a chave da revelação de todas as inscrições encontradas desde então nos templos, nas pirâmides, e nas tumbas reais do Egito.
Desde etão, um novo continente do conhecimento se abriu e, gradativamente, uma das mais antigas civilizações da Terra pôde, ainda que aos poucos, desvelar-se perante a curiosidade do homem moderno. A decifração dos hieróglifos feitas por Champollion foi um dos mais extraordinários legados do Iluminismo, enquanto a expedição de Napoleão ao Egito, apesar de só ter durado três anos e três meses, revelou-se, sob o prisma científico, uma das mais profícuas de todos os tempos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário