“Acreditam
que o Império do Oriente e talvez a sujeição de toda a Ásia não
valem uma bombacha e um turbante?” - Napoleão Bonaparte –
1798
Os
preparativos para a expedição
M.me.
Monge exasperou-se. Não podia imaginar o seu Gaspard metido nos
areais do Egito, assolado pelo frio noturno e pela incandescência
diurna do Sol do deserto. Mas o jovem general Bonaparte insistia.
Gaspard devia acompanhá-lo. Monge era um matemático celebérrimo
e Napoleão não podia dispensá-lo da aventura que planejara.
Convencida, Cathérine Huart, a esposa do Monge, concordou por fim
que ele partisse. Assim como Monge, outros 166 sábios foram
arrebatados pelo entusiamo do comandante, entre eles o químico
Berthollet, o geólogo Dolomieu, o físico Fourier, Mechain, um
técico em lunetas, e o grande naturalista Geoffrey de
Saint-Hilaire. Até um aeróstata, Nocolas Conté, e um poeta
chamado Parceval de Grandmaison embalaram-se. Contagiou Napoleão
inclusive a École Polytechnique – a hoje celebrada Poly –
inteira.
O
governo do Diretório levantou as mãos aos céus por se ver livre
daquele general de 29 anos com a ambição de um César. O jovem titã
desembarcou da sua nau capitania, o L'Orient, em Alexandria, no
Egito, no dia 1º de julho de 1798 – 40 dias após a sua partida do
sul da França. Supõe-se que o lugar do desembarque dos regimentos
de Bonaparte não distou muito dos das legiões de Pompeu, das de
César e, depois, das de Otávio, que, quase 2 mil anos antes do
conquistador francês haviam levado para aquele grande país as
desavenças políticas da Roma Republicana.
A
expedição militar francesa compunha-se de 300 navios e 35 mil
soldados, além, naturalmente, do seu departamento de sábios. Devido
à atenção que os cientistas mereciam da parte de Napoleão, não
demorou muito para que os oficiais do Exército, ciumentos,
apelidassem a corte de sábios de “amante favorita do general”.
Daí entender-se a preocupação que Bonaparte teve para com eles,
para com os cientistas, quando, na sua marcha para o Cairo, deu a
cômica mais necessária ordem: les bêtes et les savant au demí!
(os burros e os sábios no meio!), dita um pouco antes dele se
deparar com as tropas inimigas na Planície de Guizé.
A
estratégia de Napoleão ao atacar o Egito era atrair a Inglaterra
para fora das Ilhas Britânicas, bloqueando-lhe o contato com seu
império indiano. Azucriná-la bem longe de casa era sua meta.
Evidentemente que o jovem general imaginava-se um outro Alexandre,
tão moço e tão audacioso como ele. Napoleão – tal como o
conquistador macedônio (que levara, em 334 a.C., um conjunto de
especialistas e de filósofos gregos para estudar o Oriente) –
queria somar à conquista militar os ganhos científicos que iria
revelar ao mundo. Ao abrir o Egito aos olhos da Razão, esmiunçando-o
com as lentes cartesianas, a ciência europeia iria afastar as
milenares teias de aranha e o pó sagrado que envolviam
o passado
daquele magnífico país, classificando os achados e recompondo-os
pelo crivo crítico das Luzes.
Na época
do Renascimento, muitos pensadores e filósofos, como Marcílio
Ficino e Giordano Bruno, sentiam-se atraídos pelo seu mistério,
pela escrita hermética que se acreditava provir de lá e pelos seus
indecifráveis hieróglifos (tidos por muito como alfabeto de Deus).
Nada disso desejava Napoleão. Nem mistérios, nem catar almas
danadas vagando pelas tumbas ilustres, nem tentar desvendar segredos
insolúveis. Isso era coisa para hierofantes e para místicos.
Orientou seus sábios para que tudo o que fosse encontrado nas areias
e nas tumbas do Egito fosse arrolado, estudado e classificado segundo
os últimos recursos da ciência. Fugia-se da superstição e do
ocultismo. Acreditavam os cientistas que aquilo que não se sabia no
momento seguramente seria revelado no futuro. A Razão é paciente e
perseverante.
A
inspiração da expedição
A
inspiração direta para a expedição ao Oriente Médio viera-lhe de
uma obra que o impressionara: a “Voyage em Égypte et em Syrie”,
do Conde de Volney, editada em dois volumes em 1787. Na época,
Napoleão era um tenente pobre, mas visionário. Não seguiu Volney,
no entanto, na sua indisposição anti-islâmica. Ao chegar ao Egito,
na Proclamação aos Muçulmanos, afirmou: “nous sommes les vrais
musulmans!” (nós somos os verdadeiros muçulmanos!)
Napoleão
entendia que era uma rematada loucura indispor-se com a imensa
população local por motivos de fé. Havia que respeitá-los.
Surpreendeu seus próximos quando, no Cairo, trajando-se como se fora
um xeque, um chefe do divã, de turbante e tudo, enfiou-se em longas
conferências com os líderes religiosos islâmicos, orientando os
imãs, os muftis e os ulemás para que interpretassem o Corão a seu
favor. Proclamou-se cheik El Beled, o grande xeque do Egito, e émir
Hagi, o encarregado e protetor dos peregrinos, cuidando para que
todos os seus decretos fossem traduzidos para a língua árabe.
Depois
de ter dado sovas na cavalaria mameluca, espantando-a a canhonadas –
na célebre Batalha das Pirâmides – ele mesmo não resistiu em
participar de algumas expedições. Em dezembro de 1798, na companhia
dos sábios, Napoleão rumou para o Sinai, atrás do antigo Canal dos
Faraós. Curiosamente, o relatório que o engenheiro-chefe J-M Père
fez naquela época sobre os vestígios da desaparecida artéria
também caiu nas mãos dos ingleses. Décadas depois, o diplomata
Ferdinand de Lesseps, quando era cônsul da França, na cidade de
Alexandria, em 1832, inspirou-se naquela exposição feita pelo seu
compatriota para construir o Canal de Suez (inaugurado em 1869).
Desde que vira a planta feita por J-M Père, Lesseps fora possuído
pela ideia de reconstruir aquela artificial passagem soterrada nas
areias do Sinai.
O
início da Egiptologia
Em um só
ano, a equipe dos sábios franceses tinha levantado enorme material.
A tal ponto que Napoleão decidiu-se por fundar lá mesmo, em agosto
de 1799, o Institut d'Egypte. Dividido em quatro seções, a função
da instituição seria a publicação dos achados e tudo o mais que
lhe dissessem respeito. Para tanto, escolheu como sede o mais belo
palácio do Cairo, o Hassan Cachef, que se tornou o berço da moderna
egiptologia. O próprio Napoleão inscreveu-se como membro do
Departamento de Matemática.
Uma das
maiores contribuições da expedição à ciência, entretanto, só
iria revelar-se bem mais tarde, quando o próprio império
napoleônico já tinha desaparecido. Em 1799, um soldado francês,
deambulando perto da aldeia de Rosetta, encontrara uma estranha
pedra. Descobriu-se que era um decreto de Ptolomeu V Epifanes (210 –
180 a.C. ) e que estava calcado em três línguas: o hieróglifo, o
demótico e o grego. Mas ninguém, naquele momento, conseguiu
decifrá-lo. Os ingleses se apoderam da pedra quando os franceses
capitularam em 1801, levando-a para o Museu Britânico.
Coube a
Jean-François Champollion, de apenas 32 anos, traduzi-la em 1822.
ele, um gênio da filologia, dominava seis antigos idiomas orientais,
fora o grego e o latim. Dois anos depois, em 1824, ele concluiu o seu
“Précís du système hièrolyphique des anciens égyptiens”, que
tornou-se a chave da revelação de todas as inscrições encontradas
desde então nos templos, nas pirâmides, e nas tumbas reais do
Egito.
Desde
etão, um novo continente do conhecimento se abriu e, gradativamente,
uma das mais antigas civilizações da Terra pôde, ainda que aos
poucos, desvelar-se perante a curiosidade do homem moderno. A
decifração dos hieróglifos feitas por Champollion foi um dos mais
extraordinários legados do Iluminismo, enquanto a expedição de
Napoleão ao Egito, apesar de só ter durado três anos e três
meses, revelou-se, sob o prisma científico, uma das mais profícuas
de todos os tempos.
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