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domingo, 28 de junho de 2015

Direitos de Família


ITAMAR MELO

MARCELO GONZATTO


Para você, família pe formada apenas pela união entre um homem e uma mulher? Ou casais gays também constituí-la? É sobre isso que congressistas estão debatendo em Brasília


A família brasileira corria perigo em 1977 – diziam setores religiosos e conservadores. Tramitava no Congresso Nacional um projeto de lei para autorizar o divórcio. Na visão de quem combatia essa proposta, permitir a dissolução do casamento quase como decretar a dissolução da própria sociedade. “Não se machuca impunemente a espinha dorsal de um nação”, alertava o cardeal Aloísio Lorscheider, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para ele, a lei era “pecaminosa”, e o divórcio representava uma “peste”, passível de excomunhão.
Como se sabe, apesar dos discursos inflamados dos parlamentares católicos, que chegaram a pausar uma sessão porque era hora da ave-maria, o divórcio aprovado – e a família brasileira não acabou.
Passados quase 40 anos, ela voltou a estar sob ameaça, segundo setores conservadores. A nova linha de trincheira foi aberta no campo da união de pessoas do mesmo sexo.
Em 2011, o supremo Tribunal Federal (STF) analisou se uma união homoafetiva deveria receber os mesmos direitos garantidos a um casamento tradicional. Estava em questão a interpretação do artigo 226 da Constituição, que identifica como entidade famíliar “a união estável entre o homem e a mulher”. O ministro Carlos Ayres Brito argumentou que a família é anterior ao casamento e, por isso, mais abrangente que a união entre sexos opostos, Luiz Fux observou que “o homossexual não pode constituir família por força de duas questões abominadas por nossa Constituição; a intolerância e o “preconceito”. O chamado casamento gay foi reconhecido por unanimidade. Em jogo, estavam dezenas de direitos como herança, pensão alimentícia, inclusão como dependente em plano de saúde e adoção.
Na última sexta-feira, em uma votação histórica, a Suprema Corte dos EUA tomou uma decisão semelhante aprovou o casamento homossexual em todo o país.
No Brasil, o veredito de 2011 não encerrou a questão na sociedade. Outra vez, como em 1977, o cenário do confronto é o Congresso. No Senado, tramita o projeto do Estatuto das Famílias, apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), com 303 artigos que ampliam a definição legal da família e consideram o casamento uma união de pessoas de qualquer sexo. Na Câmara, corre o Estatuto da Família, proposto por Anderson Ferreira (PR-PE), da bancada evangélica. Seus 16 artigos trilham o caminho da restrição – família é “o núcleo social formado a partir da união entre o homem e uma mulher”. Esse tipo de família, heterossexual, teria uma série de direitos, como prioridade para atendimento médico e psicológico e também no Judiciário. A proposta estipula até a formação de um cadastro nacional de famílias que excluiria as uniões homossexuais.
O projeto que limita a definição de família está inserido em um cenário mais amplo, ligado ao fortalecimento de grupos conservadores, em larga de medida de fundo religioso. Recentemente, o relacionamento lésbico entre as personagens de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg na novela Babilônia, provocou reações acaloradas e perdeu espaço na trama. Um comercial de Dia dos Namorados de O Boticário, que retratava um casal homossexual, levou a campanhas de boicote à marca. Houve barulho em comunidades cristãs porque uma transexual, para aludir as perseguições que sofre, desfilou “crucificada” na Parada Gay de São Paulo. “Assistimos passivelmente ao crescimento de uma perseguição de religiosos, marcada por uma espiral de intolerância que pode ser observada nas cotidianas agressões a quem ousa pensar diferente”, comenta o juiz gaúcho e doutor em Antropologia Social Roberto Arriada Lorea.
O embate ganhou proeminência no parlamento, que consolidou sólida bancada religiosa na última eleição. Hoje, a Câmara é presidida por um líder evangélico, Eduardo Cunha, que admite ideias como o Dia do Orgulho Hétero, mas não a criminalização da homofobia. Os proponentes do Estatuto da Família lançaram enquete no site da Câmara: “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher?”. Em um ano e meio, mais de 8 milhões de votos foram computados. Houve denúncias de que igrejas evangélicas estavam mobilizando votantes. Ainda assim, o resultado parcial ilustra o atual conflito em torno da definição de uma famílias no Brasil: 52,9% concordaram que família é homem com mulher. Mas 46,8% acham que não.
Para o professor do curso de Relações Internacionais da ESPM-RJ Valdemar Figueiredo Filho, pesquisador das relações entre política, religião e mídia, a radicalização é potencializada pela falta de diálogo: “O que existe é gritaria de ambas as partes. O movimento gay não busca diálogo com movimentos religiosos moderados. O tempo todo, repercute o que esses grupos radicais religiosos fazem ou tentam fazer. Não enxergo debate, enxergo agressões.
O conservadorismo com matriz religioso emerge após décadas em que se acumularam vitórias da laicidade, dos direitos humanos e das minorias. Depois de aprovar e flexibilizar o divórcio, o país consagrou a união estável, concedeu direitos aos gays, permitiu o aborto de anencéfalos. Muitas dessas iniciativas vieram do Judiciário. Diante da paralisia de deputados e senadores, juízes começaram a se pronunciar onde não havia lei ou onde ela era omissa. “O Legislativo é conservador. Nenhum projeto com conteúdo moral se aprova. Quem fez o Direito de Família avançar, acompanhando os costumes, foi o Judiciário”, diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, que critica o Estatuto da Família: “Se for aprovado, o casamento de milhares de homossexuais vai ser anulado? As crianças adotadas por eles vão voltar para o abrigo?


Meu projeto não é homofóbico”
DEPUTADO FEDERAL ANDERSON FERREIRA (PR-PE)
Autor do projeto de lei do Estatuto da Família, que exclui os gays em sua definição de entidade familiar


Por que definir família como a união entre homem e mulher?
Não criei um conceito novo: está na Constituição. Não fiz um projeto para excluir. eu projeto não é homofóbico. Dizer isso é uma estratégia do movimento GLBT. É um único movimento que tenta pôr regra no país e faz uma campanha de desconstrução daquilo que pode trazer um benefício para a sociedade como um todo.

O senhor acredita que um casal homossexual não configura uma família?
Eles sempre se apegam a uma decisão no Supremo, na Justiça. Esses são direitos garantidos. Não estou entrando no mérito. Mas a decisão de um Supremo e da Justiça é a decisão de um colegiado. Onde existe a representatividade popular é na Câmara dos Deputados. O Supremo e a Justiça não foram escolhidos pelo voto popular. O que o estatuto vem fazer é abrir discussão sobre essas decisões que saíram. Vem fazer com que a população participe dessa discussão.


Como o senhor vê o papel da Justiça?
A Justiça está sendo pautada por mídias, tanto televisivas como redes sociais. Esquecendo de escutar a população. Quis abordar assuntos polêmicos para ter visibilidade. De forma como está hoje, estão legalizando tudo. Daqui a pouco vem a legalização das drogas, do aborto. É o momento de o parlamento se impor.


Se o estatuto for aprovado, como ficariam os direitos dos homossexuais?
O Estatuto da Família está acima dessa discussão. Ele vem trazer um benefício muito maior do que essa pequena discussão do movimento LGBT em torno de privilégios. Tem algo muito superior que é a questão do conjunto de políticas públicas para favorecer a Família brasileira. E ela não pode ser penalizada por um único movimento que se acha excluído. Que na realidade não está sendo excluído.


Mas os gays não seriam prejudicados?
Então quem tem de ser prejudicada é a população brasileira? Se eles se julgam prejudicados, mais prejudicada ainda está a população brasileira, que não tem políticas públicas para valorizar a família.


O Estatuto das Famílias, em tramitação no Senado, entende a família como união de pessoas, não necessariamente do sexo.
Sou totalmente contrário, Não faço perseguição, mas acho que a sociedade precisa de uma resposta urgente. Existe hoje uma investida na desestruturação familiar. Se qualquer arranjo for rotulado como família, daqui a pouco a gente vai legalizar também o poliamorismo, relacionamento com duas, três, quatro pessoas ao mesmo tempo, de sexos diferentes. Tenho meus posicionamentos ideológicos e cristãos, que norteiam o meu mandato. Vai vencer quem tiver a maioria.


O senhor entende que essa é a posição dominante na sociedade?
Com certeza. A nossa é uma sociedade conservadora, composta de um povo cristão. O que a gente não pode é inverter os valores da nossa sociedade para dar privilégios a um grupo. O novo formato de Congresso, mais conservador, é um clamor da própria sociedade por ver tantas investidas desse movimento. Por isso elegeu parlamentares comprometidos com defesa de valores. Quem escolhe é a população.


Qual seria o prejuízo à sociedade de estender estender os mesmos direitos a gays?
Você abre umaa janela para adoção mais na frente. A criança não faz a escolha na adoção. E é um comportamento (o dos gays) que você não sabe o dano psicológico que pode causar.


O senhor acredita em cura gay?
Fui relator de um projeto de lei que torna sem efeito uma resolução do Conselho de Psicologia, que criou uma ditadura gay. O homossexual que quiser pedir ajuda por causa do dano psíquico que (a homossexualidade) está causando a ele não pode, porque se o psicólogo for atendê-lo, pode ter a licença cassada. Com isso, você fere o direito do paciente de buscar ajuda e o direito psicológico de exercer a profissão.


Existe hoje uma investida na desestruturação familiar. Se qualquer arranjo for rotulado como família, daqui a pouco a gente vai legalizar também o poliamorismo. É uma pessoa que tem relacionamento com duas, três, quatro pessoas ao mesmo tempo, de sexos diferentes.


Uma Constituição, duas interpretações


Um dos argumentos utilizados pelos parlamentares contrários ao reconhecimento de famílias formadas por gays é de que isso contraria a Constituição – que não prevê em seu texto esse arranjo. “Defendemos o conceito de família nos termos da Constituição, que não prevê união entre dois homens ou duas mulheres. Os direitos individuais do cidadão devem ser preservados em relação a sua orientação sexual, mas isso não inclui casamento ou adoção”, sustenta o pastor e deputado federal da bancada evangélica Ronaldo Nogueira (PTB-RS).
O juiz do Rio Grande do Sul e doutor em Antropologia Social Roberto Arriada Lorea não vê impedimento jurídico para a ampliação do conceito de família: “O fato de a Constituição não admitir expressamente o casamento gay não significa sua proibição. Nosso arcabouço jurídico permite acolher o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para embasar essa conclusão, pode-se ler o artigo 3º da Constituição, que proíbe qualquer forma de discriminação.
Segundo Carlos Magno Fonseca, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travesti e Transsexuais (ABGLT), a proposta do Estatuto da Família afronta os direitos humanos, os avanços na discussão sobre família e o próprio STF. “Quando o Supremo, através da ministra Carmen Lúcia decide que um casal gay pode adotar uma criança, isso mostra claramente qual é a posição do Judiciário. Não existe um modelo único, mas vários modelos de constituição de família. O Congresso esá na contramão disso, porque na realidade está atuando através de suas concepções morais e religiosas. É tanta proposta absurda que daqui a pouco vão revogar a Lei Áurea – avalia Fonseca.
Evangélico durante 18 anos, oito deles como pastor, o militante gay Sérgio Viula acredita que os projetos de lei da bancada religiosa fazem parte de “uma estratégia dos fundamentalistas” para neutralizar decisões do STF em favor dos homossexuais. A intenção seria explorar brechas na Constituição para criar leis que neguem direitos, empurrando o Judiciário para uma postura mais conservadora, na medida em que seria forçado a julgar de acordo com as novas legislações. Viula afirma: “De 1988 para cá, o Congresso nunca aprovou uma lei que valorizasse as uniões civis entre homossexuais ou que desse aos gays uma posição um pouco mais segura na sociedade. Já que o Congresso era moroso e não existia legislação específica, o Judiciário criou reconhecimentos baseados me princípios gerais da Constituição. Mas os juízes não vão poder manter essas decisões se houver uma lei claramente oposta.
Viula fala a partir de uma experiência invulgar. Quando ele se converteu, na adolescência, achou que estava curado da homossexualidade, casou com uma mulher, teve filhos e até mesmo ajudou a fundar um movimento que promovia a “cura gay”, no qal atuou durante anos. Há pouco mais de uma década, saiu do armário, desfez o casamento e largou a igreja;
Eu acreditava muito na cura gay”, diz. “A Bíblia diz que 'aquele que está em Cristo nova criatura é', então eu me achava uma nova criatura. Eu poderia afirmar que já não era mais gay, mesmo que ainda me sentisse atraído por homem. Porque valia mais a verdade de Deus do que a minha”.


ESTATUTO DA FAMÍLIA


Define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”

É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.”

É assegurada a atenção integral à saúde dos membros da entidade familiar, por intermédio do SUS e do Programa de Saúde da Família.”

É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse versado constitua risco à preservação e à sobrevivência da entidade familiar.”

Os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem ter em sua base nacional, como componente curricular obrigatório, a disciplina Educação para Família.”


ESTATUTO DAS FAMÍLIAS


O direito à família é direito fundamental de todos.”

O parentesco resulta da consanguinidade, da socioafetividade e da afinidade.”

A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais.”

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, continua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”



Hoje, o conceito de família é muito mais amplo e plural”
SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA)
Autora do projeto de lei do Estatuto das Famílias, que reconhece também os gays como entidade familiar


A tramitação do Estatuto das Famílias está enfrentando resistência de setores conservadores?
Mesmo com eventuais discordâncias à nossa proposta, não temos enfrentado no Senado, até o momento, resistências que interfiram na tramitação do projeto de lei que estabelece o Estatuto das Famílias. Propusemos audiências na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa justamente para permitir o debate e a troca de opiniões sobre o tema. No decorrer deste ano, poderemos amadurecer a matéria, com a participação dos diversos setores da sociedade.


O Estatuto não diferencia entre famílias heterossexuais e homossexuais. Por que a senhora acha isso importante? O que é uma família hoje?
O que o nosso projeto prevê e propõe é justamente proteger todas as formas de todas as formas de convivência familiar existentes. Hoje, o conceito de família é muito mais amplo e plural. Temos, na sociedade, diversas estruturas familiares: pais ou mães separados ou viúvos criando seus filhos ou filhas, avós e avôs criando seus netos ou netas, tios e tias criando sobrinhos ou sobrinhas, irmãos cuidando de irmãos, uniões homoafetivas, casais hétero ou homossexuais adotando criança que antes não tinha lar e famílias chefiadas e mantidas somente por mulheres, que são a maioria dos lares brasileiros. Ou seja, são inúmeras as possibilidades. O que propomos é garantir amparo legal e rapidez às decisões da Justiça quando as famílias, quaisquer que sejam, e por quaisquer motivos, assim precisarem.


Como a senhora vê a iniciativa do Estatuto da Família, em tramitação na Câmara?
É importante esclarecer que nosso projeto, denominado Estatuto das Famílias, no plural, nada tem a ver com outro projeto, de nome parecido, que tramita na Câmara dos Deputados e que tem características completamente diferentes. Nossa proposta visa, principalmente, reunir num só instrumento legal toda a legislação e jurisprudência atualizada referente à área do Direito de Família, modernizando-a e garantindo a proteção de todas as estruturas familiares presentes na sociedade moderna. Hoje, mais do que nunca, é necessário adequar as normas jurídicas às novas formatações de famílias que ainda não são protegidas pela atual legislação. Se não for assim, estaremos sempre a reboque das decisões do Judiciário, abrindo mão de nossas prerrogativas constitucionais de legislar. Não posso conceber e aceitar um projeto que restrinja o conceito de família como este que tramita na Câmara. Como já foi dito, as famílias hoje são plurais.


O Estatuto da Família da Câmara representa riscos para conquistas garantidas nos últimos anos?
O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas em 2011. A jurisprudência já tem sido favorável à questão das uniões homoafetivas em várias causas: pensões e benefícios por morte, adoções, entre outras. Restringir o conceito de família não é o caminho, porque as famílias da sociedade moderna se ampliaram.


As concepções de família presentes no Estatuto da Família e no Estatuto das Famílias refletem uma divisão ideológica na sociedade brasileira?
Não creio em divisão ideológica. Acredito que a proposição da Câmara esteja mais relacionada à defesa de uma corrente moral ou religiosa. Hoje, não se pode pontuar que existem mais ou menos famílias desse ou daquele modelo. O mundo mudou. A sociedade mudou. E o Estado e a lei têm de ser laicos. Há várias formas de convivência familiar e não se pode negar o direito das pessoas conviverem, com amor e afeto, nem negar-lhes o amparo jurídico quando necessário. É fato. É realidade. Não podemos, via lei, fomentar qualquer forma de discriminação e preconceito.


Hoje, mais do que nunca, é necessário adequar as normas jurídicas às novas formatações de família que ainda não são protegidas pela atual legislação. Se não for assim, estaremos sempre a reboque das decisões do Judiciário, abrindo mão de nossas prerrogativas constitucionais de legislar.


A força da bancada da Bíblia


Em um recinto lotado, um capelão abre o culto lendo trechos da Bíblia. Após louvores, um cantor evangélico entoa a canção Minha Vida É do Meu Mestre e, ao final da cerimônia, um pastor evoca o Salmo 72: “Ele descerá como chuva sobre a erva ceifada, como os chuveiros que umedecem a terra”.
A cena não ocorreu em nenhum tempo. Teve lugar no Congresso Nacional no dia 11 de fevereiro e contou a presença do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e quase uma centena de parlamentares.
A celebração ilustra como a bancada religiosa ganhou força e exposição por meio da eleição de um número inédito de deputados federais e senadores, da ocupação de cargos centrais na hierarquia da Casa e da organização para defender ou derrubar projetos sob inspiração das Sagradas Escrituras.
A bancada evangélica, que reúne os representantes mais ativos e organizados entre os políticos devotos, conseguiu eleger 78 deputados e três senadores na atual legislatura – um recorde – e, pela primeira vez, assumiu a presidência da Câmara. Robustecida, procura adequar a legislação brasileira a sua interpretação da Bíblia.
O pastor e deputado federal gaúcho Ronaldo Nogueira (PTB), representante da bancada, afirma que a ação dos parlamentares que trocaram os templos pelo Congresso não fere a laicidade do Estado. “O caráter laico diz que o Estado não pode ter uma religião oficial, razão pela qual podemos dizer que o Brasil não é um Estado cristão. Mas não significa que princípios advindos do cristianismo não possam nortear leis. Também não se pode caracterizar o Estado como ateu”, argumenta.
A doutora em Ciências da Comunicação Magali do Nascimento Cunha, professora da Universidade Metodista de São Paulo e especialista na área de mídia, religião e política, aponta que a bancada da Bíblia dá prioridade a temas morais como o combate ao aborto e aos direitos homossexuais, além de se aliar a setores não religiosos na defesa de pautas político-econômicas como a redução do Estado e o livre mercado. Mas a defesa da “família tradicional” se converteu em uma das principais estratégias para somar capital político. “Esses personagens têm captado apoio além do círculo religioso com o mote “é preciso salvar a família”. Na visão dessas lideranças, a família está sob ameaça dos movimentos civis por direitos sexuais e enfrentamento da violência sexual, reforçados por ações do governo federal”, observa.


AS VANTAGENS SO RADICALISMO


A entrada dos evangélicos na política teve como grande marco a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Até então, consideravam-se mandato e sacerdócio atividades incompatíveis. “Eles achavam que política era coisa do diabo. Mas então surgiu a ideia de que, por serem um grupo minoritário, seriam prejudicados na formulação da nova Constituição. Resolveram formar uma representação para que seus direitos não fossem usurpados. O discurso era: os católicos nos perseguem e a Rede Globo nos persegue. Precisamos ter a nossa própria mídia e a nossa própria representação política. Esse discurso está aí até hoje”, observa Valdemar Figueiredo Filho, professor do curso de Relações Internacionais da ESPM-RJ e pesquisador das relações entre política, religião e mídia.
O ex-pastor Sergio Viula, hoje militante dos direitos dos homossexuais, acompanhou esse momento como um integrante do mundo evangélico. Ele afirma que, antes, o sonho dos fiéis era eleger um presidente que compartilhasse sua fé, porque assim “o Brasil seria do senhor Jesus”. “Essa era a ideia. Só que eles nunca tiveram maioria para eleger um presidente. Começaram a comer pelas beiradas: um vereador, um deputado, um deputado federal, um senador. E descobriram que na verdade quem manda no Brasil é o Legislativo. Porque o Legislativo é que vota orçamento, aprova as contas do governo e estabelece as leis que o próprio STF vai ter de usar. Perceberam que podiam fazer muito mais barulho e movimento no Legislativo”, analisa Viula.
Valdemar observa que os grupos religiosos chegaram à Câmara como defensores de uma pauta de conservação de valores. Tomaram gosto e começaram a investir pesado. Continuaram empurrando uma pauta conservadora porque descobriram que isso rendia dividendos políticos. “Já pensei que era uma questão de crenças, mas hoje tenho convicção de que é uma questão de oportunismo. Radicalizar o discurso traz vantagens eleitorais e te coloca na mídia, te coloca em evidência. Gente que não teria importância no parlamento passara a ter, por conta disso. O político evangélico poderia dizer: eu não concordo com a prática homossexual, pela minha orientação religiosa, mas reconheço que outros não se pautam pelos meus valores. Portanto, devem ter os direitos reconhecidos. No entanto, é o discurso radical que torna esses agentes políticos fortes.
Nogueira nega radicalismo por parte da bancada religiosa, e atribui a frações do movimento gay “falta de respeito” com símbolos cristãos: “No Brasil, nenhum cristão apedreja sinagoga. Não há radicalismo. Mas símbolos religiosos foram desrespeitados na marcha gay em São Paulo, por exemplo”.


ONDA CONSERVADORA DENTRO E FORA DO CONGRESSO
REVERSÃO DO DESARMAMENTO – Um projeto de lei prevê reverter no Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003 sob o princípio de dificultar o acesso a armas no Brasil. A nova proposta reduz a idade mínima para porte de 25 anos para 21 e elimina a comprovação da necessidade do uso.
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL – Uma das propostas mais polêmicas em tramitação no Congresso é a redução da maioridade penal dos atuais 18 anos para 16 nos casos de crimes graves, sob o argumento de reduzir a criminalidade. Para os detratores do projeto, a redução não diminuiria a violência e reduziria proteção aos adolescentes.
REAÇÃO À PRESENÇA NA MÍDIA – Recentemente, a exibição de imagens de casais homossexuais na TV provocou ondas de protesto em todo o país. Cenas de lesbianismo entre as atrizes Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro na novela Babilônia (da Globo) despertaram reclamações e perderam visibilidade. Uma propaganda de O Boticário mostrando casais gays motivou campanhas de boicote à marca.
EXCLUSÃO DAS AULAS DE GÊNERO – Um ano após a aprovação do Plano Nacional de Educação, Estados e municípios também atualizam suas metas na área. Por pressão de igrejas, pelo menos oito Estados – incluindo o RS – tiraram seus planos regionais a previsão de referências a identidades de gênero, à diversidade e à orientação sexual nas escolas.



Fonte: Zero Hora, páginas 27, 28, 29 e 30 de 28 de junho de 2015. 

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