ITAMAR MELO
MARCELO GONZATTO
Para você, família pe formada apenas
pela união entre um homem e uma mulher? Ou casais gays também
constituí-la? É sobre isso que congressistas estão debatendo em
Brasília
A família brasileira corria perigo
em 1977 – diziam setores religiosos e conservadores. Tramitava no
Congresso Nacional um projeto de lei para autorizar o divórcio. Na
visão de quem combatia essa proposta, permitir a dissolução do
casamento quase como decretar a dissolução da própria sociedade.
“Não se machuca impunemente a espinha dorsal de um nação”,
alertava o cardeal Aloísio Lorscheider, presidente da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para ele, a lei era
“pecaminosa”, e o divórcio representava uma “peste”,
passível de excomunhão.
Como se sabe, apesar dos discursos
inflamados dos parlamentares católicos, que chegaram a pausar uma
sessão porque era hora da ave-maria, o divórcio aprovado – e a
família brasileira não acabou.
Passados quase 40 anos, ela voltou a
estar sob ameaça, segundo setores conservadores. A nova linha de
trincheira foi aberta no campo da união de pessoas do mesmo sexo.
Em 2011, o supremo Tribunal Federal
(STF) analisou se uma união homoafetiva deveria receber os mesmos
direitos garantidos a um casamento tradicional. Estava em questão a
interpretação do artigo 226 da Constituição, que identifica como
entidade famíliar “a união estável entre o homem e a mulher”.
O ministro Carlos Ayres Brito argumentou que a família é anterior
ao casamento e, por isso, mais abrangente que a união entre sexos
opostos, Luiz Fux observou que “o homossexual não pode constituir
família por força de duas questões abominadas por nossa
Constituição; a intolerância e o “preconceito”. O chamado
casamento gay foi reconhecido por unanimidade. Em jogo, estavam
dezenas de direitos como herança, pensão alimentícia, inclusão
como dependente em plano de saúde e adoção.
Na última sexta-feira, em uma
votação histórica, a Suprema Corte dos EUA tomou uma decisão
semelhante aprovou o casamento homossexual em todo o país.
No Brasil, o veredito de 2011 não
encerrou a questão na sociedade. Outra vez, como em 1977, o cenário
do confronto é o Congresso. No Senado, tramita o projeto do Estatuto
das Famílias, apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA),
com 303 artigos que ampliam a definição legal da família e
consideram o casamento uma união de pessoas de qualquer sexo. Na
Câmara, corre o Estatuto da Família, proposto por Anderson Ferreira
(PR-PE), da bancada evangélica. Seus 16 artigos trilham o caminho da
restrição – família é “o núcleo social formado a partir da
união entre o homem e uma mulher”. Esse tipo de família,
heterossexual, teria uma série de direitos, como prioridade para
atendimento médico e psicológico e também no Judiciário. A
proposta estipula até a formação de um cadastro nacional de
famílias que excluiria as uniões homossexuais.
O
projeto que limita a definição de família está inserido em um
cenário mais amplo, ligado ao fortalecimento de grupos
conservadores, em larga de medida de fundo religioso. Recentemente, o
relacionamento lésbico entre as personagens de Fernanda Montenegro e
Nathalia Timberg na novela Babilônia, provocou
reações acaloradas e perdeu espaço na trama. Um comercial de Dia
dos Namorados de O Boticário, que retratava um casal homossexual,
levou a campanhas de boicote à marca. Houve barulho em comunidades
cristãs porque uma transexual, para aludir as perseguições que
sofre, desfilou “crucificada” na Parada Gay de São Paulo.
“Assistimos passivelmente ao crescimento de uma perseguição de
religiosos, marcada por uma espiral de intolerância que pode ser
observada nas cotidianas agressões a quem ousa pensar diferente”,
comenta o juiz gaúcho e doutor em Antropologia Social Roberto
Arriada Lorea.
O embate ganhou proeminência no
parlamento, que consolidou sólida bancada religiosa na última
eleição. Hoje, a Câmara é presidida por um líder evangélico,
Eduardo Cunha, que admite ideias como o Dia do Orgulho Hétero, mas
não a criminalização da homofobia. Os proponentes do Estatuto da
Família lançaram enquete no site da Câmara: “Você concorda com
a definição de família como núcleo formado a partir da união
entre homem e mulher?”. Em um ano e meio, mais de 8 milhões de
votos foram computados. Houve denúncias de que igrejas evangélicas
estavam mobilizando votantes. Ainda assim, o resultado parcial
ilustra o atual conflito em torno da definição de uma famílias no
Brasil: 52,9% concordaram que família é homem com mulher. Mas 46,8%
acham que não.
Para o professor do curso de Relações
Internacionais da ESPM-RJ Valdemar Figueiredo Filho, pesquisador das
relações entre política, religião e mídia, a radicalização é
potencializada pela falta de diálogo: “O que existe é gritaria de
ambas as partes. O movimento gay não busca diálogo com movimentos
religiosos moderados. O tempo todo, repercute o que esses grupos
radicais religiosos fazem ou tentam fazer. Não enxergo debate,
enxergo agressões.
O conservadorismo com matriz
religioso emerge após décadas em que se acumularam vitórias da
laicidade, dos direitos humanos e das minorias. Depois de aprovar e
flexibilizar o divórcio, o país consagrou a união estável,
concedeu direitos aos gays, permitiu o aborto de anencéfalos. Muitas
dessas iniciativas vieram do Judiciário. Diante da paralisia de
deputados e senadores, juízes começaram a se pronunciar onde não
havia lei ou onde ela era omissa. “O Legislativo é conservador.
Nenhum projeto com conteúdo moral se aprova. Quem fez o Direito de
Família avançar, acompanhando os costumes, foi o Judiciário”,
diz Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de
Direito de Família, que critica o Estatuto da Família: “Se for
aprovado, o casamento de milhares de homossexuais vai ser anulado? As
crianças adotadas por eles vão voltar para o abrigo?
“Meu projeto não é homofóbico”
DEPUTADO FEDERAL ANDERSON FERREIRA
(PR-PE)
Autor do projeto de lei do Estatuto da
Família, que exclui os gays em sua definição de entidade familiar
Por que definir família como a
união entre homem e mulher?
Não
criei um conceito novo: está na Constituição. Não fiz um projeto
para excluir. eu projeto não é homofóbico. Dizer isso é uma
estratégia do movimento GLBT. É um único movimento que tenta pôr
regra no país e faz uma campanha de desconstrução daquilo que pode
trazer um benefício para a sociedade como um todo.
O senhor acredita que um casal
homossexual não configura uma família?
Eles
sempre se apegam a uma decisão no Supremo, na Justiça. Esses são
direitos garantidos. Não estou entrando no mérito. Mas a decisão
de um Supremo e da Justiça é a decisão de um colegiado. Onde
existe a representatividade popular é na Câmara dos Deputados. O
Supremo e a Justiça não foram escolhidos pelo voto popular. O que o
estatuto vem fazer é abrir discussão sobre essas decisões que
saíram. Vem fazer com que a população participe dessa discussão.
Como o senhor vê o papel da
Justiça?
A
Justiça está sendo pautada por mídias, tanto televisivas como
redes sociais. Esquecendo de escutar a população. Quis abordar
assuntos polêmicos para ter visibilidade. De forma como está hoje,
estão legalizando tudo. Daqui a pouco vem a legalização das
drogas, do aborto. É o momento de o parlamento se impor.
Se o estatuto for aprovado, como
ficariam os direitos dos homossexuais?
O
Estatuto da Família está acima dessa discussão. Ele vem trazer um
benefício muito maior do que essa pequena discussão do movimento
LGBT em torno de privilégios. Tem algo muito superior que é a
questão do conjunto de políticas públicas para favorecer a Família
brasileira. E ela não pode ser penalizada por um único movimento
que se acha excluído. Que na realidade não está sendo excluído.
Mas os gays não seriam
prejudicados?
Então
quem tem de ser prejudicada é a população brasileira? Se eles se
julgam prejudicados, mais prejudicada ainda está a população
brasileira, que não tem políticas públicas para valorizar a
família.
O Estatuto das Famílias, em
tramitação no Senado, entende a família como união de pessoas,
não necessariamente do sexo.
Sou
totalmente contrário, Não faço perseguição, mas acho que a
sociedade precisa de uma resposta urgente. Existe hoje uma investida
na desestruturação familiar. Se qualquer arranjo for rotulado como
família, daqui a pouco a gente vai legalizar também o poliamorismo,
relacionamento com duas, três, quatro pessoas ao mesmo tempo, de
sexos diferentes. Tenho meus posicionamentos ideológicos e cristãos,
que norteiam o meu mandato. Vai vencer quem tiver a maioria.
O senhor entende que essa é a
posição dominante na sociedade?
Com
certeza. A nossa é uma sociedade conservadora, composta de um povo
cristão. O que a gente não pode é inverter os valores da nossa
sociedade para dar privilégios a um grupo. O novo formato de
Congresso, mais conservador, é um clamor da própria sociedade por
ver tantas investidas desse movimento. Por isso elegeu parlamentares
comprometidos com defesa de valores. Quem escolhe é a população.
Qual seria o prejuízo à
sociedade de estender estender os mesmos direitos a gays?
Você
abre umaa janela para adoção mais na frente. A criança não faz a
escolha na adoção. E é um comportamento (o
dos gays) que você não
sabe o dano psicológico que pode causar.
O senhor acredita em cura gay?
Fui
relator de um projeto de lei que torna sem efeito uma resolução do
Conselho de Psicologia, que criou uma ditadura gay. O homossexual que
quiser pedir ajuda por causa do dano psíquico que (a
homossexualidade) está
causando a ele não pode, porque se o psicólogo for atendê-lo, pode
ter a licença cassada. Com isso, você fere o direito do paciente de
buscar ajuda e o direito psicológico de exercer a profissão.
Existe hoje uma investida na
desestruturação familiar. Se qualquer arranjo for rotulado como
família, daqui a pouco a gente vai legalizar também o poliamorismo.
É uma pessoa que tem relacionamento com duas, três, quatro pessoas
ao mesmo tempo, de sexos diferentes.
Uma Constituição, duas
interpretações
Um
dos argumentos utilizados pelos parlamentares contrários ao
reconhecimento de famílias formadas por gays é de que isso
contraria a Constituição – que não prevê em seu texto esse
arranjo. “Defendemos o conceito de família nos termos da
Constituição, que não prevê união entre dois homens ou duas
mulheres. Os direitos individuais do cidadão devem ser preservados
em relação a sua orientação sexual, mas isso não inclui
casamento ou adoção”, sustenta o pastor e deputado federal da
bancada evangélica Ronaldo Nogueira (PTB-RS).
O juiz do Rio Grande do Sul e doutor
em Antropologia Social Roberto Arriada Lorea não vê impedimento
jurídico para a ampliação do conceito de família: “O fato de a
Constituição não admitir expressamente o casamento gay não
significa sua proibição. Nosso arcabouço jurídico permite acolher
o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Para embasar essa conclusão,
pode-se ler o artigo 3º da Constituição, que proíbe qualquer
forma de discriminação.
Segundo Carlos Magno Fonseca,
presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travesti e
Transsexuais (ABGLT), a proposta do Estatuto da Família afronta os
direitos humanos, os avanços na discussão sobre família e o
próprio STF. “Quando o Supremo, através da ministra Carmen Lúcia
decide que um casal gay pode adotar uma criança, isso mostra
claramente qual é a posição do Judiciário. Não existe um modelo
único, mas vários modelos de constituição de família. O
Congresso esá na contramão disso, porque na realidade está atuando
através de suas concepções morais e religiosas. É tanta proposta
absurda que daqui a pouco vão revogar a Lei Áurea – avalia
Fonseca.
Evangélico durante 18 anos, oito
deles como pastor, o militante gay Sérgio Viula acredita que os
projetos de lei da bancada religiosa fazem parte de “uma estratégia
dos fundamentalistas” para neutralizar decisões do STF em favor
dos homossexuais. A intenção seria explorar brechas na Constituição
para criar leis que neguem direitos, empurrando o Judiciário para
uma postura mais conservadora, na medida em que seria forçado a
julgar de acordo com as novas legislações. Viula afirma: “De 1988
para cá, o Congresso nunca aprovou uma lei que valorizasse as uniões
civis entre homossexuais ou que desse aos gays uma posição um pouco
mais segura na sociedade. Já que o Congresso era moroso e não
existia legislação específica, o Judiciário criou reconhecimentos
baseados me princípios gerais da Constituição. Mas os juízes não
vão poder manter essas decisões se houver uma lei claramente
oposta.
Viula
fala a partir de uma experiência invulgar. Quando ele se converteu,
na adolescência, achou que estava curado da homossexualidade, casou
com uma mulher, teve filhos e até mesmo ajudou a fundar um movimento
que promovia a “cura gay”, no qal atuou durante anos. Há pouco
mais de uma década, saiu do armário, desfez o casamento e largou a
igreja;
“Eu acreditava muito na cura gay”,
diz. “A Bíblia diz que 'aquele que está em Cristo nova criatura
é', então eu me achava uma nova criatura. Eu poderia afirmar que já
não era mais gay, mesmo que ainda me sentisse atraído por homem.
Porque valia mais a verdade de Deus do que a minha”.
ESTATUTO DA FAMÍLIA
“Define-se entidade familiar como o
núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma
mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por
comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.”
“É obrigação do Estado, da
sociedade e do Poder Público assegurar à entidade familiar a
efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à
convivência comunitária.”
“É assegurada a atenção integral
à saúde dos membros da entidade familiar, por intermédio do SUS e
do Programa de Saúde da Família.”
“É assegurada prioridade na
tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e
diligências judiciais, em qualquer instância, em que o interesse
versado constitua risco à preservação e à sobrevivência da
entidade familiar.”
“Os currículos do Ensino
Fundamental e Médio devem ter em sua base nacional, como componente
curricular obrigatório, a disciplina Educação para Família.”
ESTATUTO DAS FAMÍLIAS
“O direito à família é direito
fundamental de todos.”
“O parentesco resulta da
consanguinidade, da socioafetividade e da afinidade.”
“A pessoa casada, ou que viva em
união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com
outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste
artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais.”
“É reconhecida como entidade
familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na
convivência pública, continua, duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.”
“Hoje, o conceito de família é
muito mais amplo e plural”
SENADORA LÍDICE DA MATA (PSB-BA)
Autora do projeto de lei do Estatuto
das Famílias, que reconhece também os gays como entidade familiar
A tramitação do Estatuto das
Famílias está enfrentando resistência de setores conservadores?
Mesmo com eventuais discordâncias à
nossa proposta, não temos enfrentado no Senado, até o momento,
resistências que interfiram na tramitação do projeto de lei que
estabelece o Estatuto das Famílias. Propusemos audiências na
Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa justamente
para permitir o debate e a troca de opiniões sobre o tema. No
decorrer deste ano, poderemos amadurecer a matéria, com a
participação dos diversos setores da sociedade.
O Estatuto não diferencia entre
famílias heterossexuais e homossexuais. Por que a senhora acha isso
importante? O que é uma família hoje?
O
que o nosso projeto prevê e propõe é justamente proteger todas as
formas de todas as formas de convivência familiar existentes. Hoje,
o conceito de família é muito mais amplo e plural. Temos, na
sociedade, diversas estruturas familiares: pais ou mães separados ou
viúvos criando seus filhos ou filhas, avós e avôs criando seus
netos ou netas, tios e tias criando sobrinhos ou sobrinhas, irmãos
cuidando de irmãos, uniões homoafetivas, casais hétero ou
homossexuais adotando criança que antes não tinha lar e famílias
chefiadas e mantidas somente por mulheres, que são a maioria dos
lares brasileiros. Ou seja, são inúmeras as possibilidades. O que
propomos é garantir amparo legal e rapidez às decisões da Justiça
quando as famílias, quaisquer que sejam, e por quaisquer motivos,
assim precisarem.
Como a senhora vê a iniciativa do
Estatuto da Família, em tramitação na Câmara?
É
importante esclarecer que nosso projeto, denominado Estatuto das
Famílias, no plural, nada tem a ver com outro projeto, de nome
parecido, que tramita na Câmara dos Deputados e que tem
características completamente diferentes. Nossa proposta visa,
principalmente, reunir num só instrumento legal toda a legislação
e jurisprudência atualizada referente à área do Direito de
Família, modernizando-a e garantindo a proteção de todas as
estruturas familiares presentes na sociedade moderna. Hoje, mais do
que nunca, é necessário adequar as normas jurídicas às novas
formatações de famílias que ainda não são protegidas pela atual
legislação. Se não for assim, estaremos sempre a reboque das
decisões do Judiciário, abrindo mão de nossas prerrogativas
constitucionais de legislar. Não posso conceber e aceitar um projeto
que restrinja o conceito de família como este que tramita na Câmara.
Como já foi dito, as famílias hoje são plurais.
O Estatuto da Família da Câmara
representa riscos para conquistas garantidas nos últimos anos?
O
próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu as uniões homoafetivas
em 2011. A jurisprudência já tem sido favorável à questão das
uniões homoafetivas em várias causas: pensões e benefícios por
morte, adoções, entre outras. Restringir o conceito de família não
é o caminho, porque as famílias da sociedade moderna se ampliaram.
As concepções de família
presentes no Estatuto da Família e no Estatuto das Famílias
refletem uma divisão ideológica na sociedade brasileira?
Não
creio em divisão ideológica. Acredito que a proposição da Câmara
esteja mais relacionada à defesa de uma corrente moral ou religiosa.
Hoje, não se pode pontuar que existem mais ou menos famílias desse
ou daquele modelo. O mundo mudou. A sociedade mudou. E o Estado e a
lei têm de ser laicos. Há várias formas de convivência familiar e
não se pode negar o direito das pessoas conviverem, com amor e
afeto, nem negar-lhes o amparo jurídico quando necessário. É fato.
É realidade. Não podemos, via lei, fomentar qualquer forma de
discriminação e preconceito.
Hoje, mais do que nunca, é
necessário adequar as normas jurídicas às novas formatações de
família que ainda não são protegidas pela atual legislação. Se
não for assim, estaremos sempre a reboque das decisões do
Judiciário, abrindo mão de nossas prerrogativas constitucionais de
legislar.
A força da bancada da Bíblia
Em
um recinto lotado, um capelão abre o culto lendo trechos da Bíblia.
Após louvores, um cantor evangélico entoa a canção Minha
Vida É do Meu Mestre e,
ao final da cerimônia, um pastor evoca o Salmo 72: “Ele descerá
como chuva sobre a erva ceifada, como os chuveiros que umedecem a
terra”.
A cena não ocorreu em nenhum tempo.
Teve lugar no Congresso Nacional no dia 11 de fevereiro e contou a
presença do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e quase
uma centena de parlamentares.
A celebração ilustra como a bancada
religiosa ganhou força e exposição por meio da eleição de um
número inédito de deputados federais e senadores, da ocupação de
cargos centrais na hierarquia da Casa e da organização para
defender ou derrubar projetos sob inspiração das Sagradas
Escrituras.
A bancada evangélica, que reúne os
representantes mais ativos e organizados entre os políticos devotos,
conseguiu eleger 78 deputados e três senadores na atual legislatura
– um recorde – e, pela primeira vez, assumiu a presidência da
Câmara. Robustecida, procura adequar a legislação brasileira a sua
interpretação da Bíblia.
O pastor e deputado federal gaúcho
Ronaldo Nogueira (PTB), representante da bancada, afirma que a ação
dos parlamentares que trocaram os templos pelo Congresso não fere a
laicidade do Estado. “O caráter laico diz que o Estado não pode
ter uma religião oficial, razão pela qual podemos dizer que o
Brasil não é um Estado cristão. Mas não significa que princípios
advindos do cristianismo não possam nortear leis. Também não se
pode caracterizar o Estado como ateu”, argumenta.
A doutora em Ciências da Comunicação
Magali do Nascimento Cunha, professora da Universidade Metodista de
São Paulo e especialista na área de mídia, religião e política,
aponta que a bancada da Bíblia dá prioridade a temas morais como o
combate ao aborto e aos direitos homossexuais, além de se aliar a
setores não religiosos na defesa de pautas político-econômicas
como a redução do Estado e o livre mercado. Mas a defesa da
“família tradicional” se converteu em uma das principais
estratégias para somar capital político. “Esses personagens têm
captado apoio além do círculo religioso com o mote “é preciso
salvar a família”. Na visão dessas lideranças, a família está
sob ameaça dos movimentos civis por direitos sexuais e enfrentamento
da violência sexual, reforçados por ações do governo federal”,
observa.
AS VANTAGENS SO RADICALISMO
A
entrada dos evangélicos na política teve como grande marco a
Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Até então,
consideravam-se mandato e sacerdócio atividades incompatíveis.
“Eles achavam que política era coisa do diabo. Mas então surgiu a
ideia de que, por serem um grupo minoritário, seriam prejudicados na
formulação da nova Constituição. Resolveram formar uma
representação para que seus direitos não fossem usurpados. O
discurso era: os católicos nos perseguem e a Rede Globo nos
persegue. Precisamos ter a nossa própria mídia e a nossa própria
representação política. Esse discurso está aí até hoje”,
observa Valdemar Figueiredo Filho, professor do curso de Relações
Internacionais da ESPM-RJ e pesquisador das relações entre
política, religião e mídia.
O ex-pastor Sergio Viula, hoje
militante dos direitos dos homossexuais, acompanhou esse momento como
um integrante do mundo evangélico. Ele afirma que, antes, o sonho
dos fiéis era eleger um presidente que compartilhasse sua fé,
porque assim “o Brasil seria do senhor Jesus”. “Essa era a
ideia. Só que eles nunca tiveram maioria para eleger um presidente.
Começaram a comer pelas beiradas: um vereador, um deputado, um
deputado federal, um senador. E descobriram que na verdade quem manda
no Brasil é o Legislativo. Porque o Legislativo é que vota
orçamento, aprova as contas do governo e estabelece as leis que o
próprio STF vai ter de usar. Perceberam que podiam fazer muito mais
barulho e movimento no Legislativo”, analisa Viula.
Valdemar observa que os grupos
religiosos chegaram à Câmara como defensores de uma pauta de
conservação de valores. Tomaram gosto e começaram a investir
pesado. Continuaram empurrando uma pauta conservadora porque
descobriram que isso rendia dividendos políticos. “Já pensei que
era uma questão de crenças, mas hoje tenho convicção de que é
uma questão de oportunismo. Radicalizar o discurso traz vantagens
eleitorais e te coloca na mídia, te coloca em evidência. Gente que
não teria importância no parlamento passara a ter, por conta disso.
O político evangélico poderia dizer: eu não concordo com a prática
homossexual, pela minha orientação religiosa, mas reconheço que
outros não se pautam pelos meus valores. Portanto, devem ter os
direitos reconhecidos. No entanto, é o discurso radical que torna
esses agentes políticos fortes.
Nogueira nega radicalismo por parte
da bancada religiosa, e atribui a frações do movimento gay “falta
de respeito” com símbolos cristãos: “No Brasil, nenhum cristão
apedreja sinagoga. Não há radicalismo. Mas símbolos religiosos
foram desrespeitados na marcha gay em São Paulo, por exemplo”.
ONDA
CONSERVADORA DENTRO E FORA DO CONGRESSO
|
REVERSÃO
DO DESARMAMENTO – Um
projeto de lei prevê reverter no Estatuto do Desarmamento,
aprovado em 2003 sob o princípio de dificultar o acesso a armas
no Brasil. A nova proposta reduz a idade mínima para porte de 25
anos para 21 e elimina a comprovação da necessidade do uso.
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REDUÇÃO
DA MAIORIDADE PENAL – Uma das propostas mais polêmicas em
tramitação no Congresso é a redução da maioridade penal dos
atuais 18 anos para 16 nos casos de crimes graves, sob o
argumento de reduzir a criminalidade. Para os detratores do
projeto, a redução não diminuiria a violência e reduziria
proteção aos adolescentes.
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REAÇÃO
À PRESENÇA NA MÍDIA – Recentemente,
a exibição de imagens de casais homossexuais na TV provocou
ondas de protesto em todo o país. Cenas de lesbianismo entre as
atrizes Nathalia Timberg e Fernanda Montenegro na novela Babilônia
(da
Globo) despertaram reclamações e perderam visibilidade. Uma
propaganda de O Boticário mostrando casais gays motivou campanhas
de boicote à marca.
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EXCLUSÃO
DAS AULAS DE GÊNERO – Um
ano após a aprovação do Plano Nacional de Educação, Estados e
municípios também atualizam suas metas na área. Por pressão de
igrejas, pelo menos oito Estados – incluindo o RS – tiraram
seus planos regionais a previsão de referências a identidades de
gênero, à diversidade e à orientação sexual nas escolas.
|
Fonte: Zero Hora, páginas 27, 28, 29
e 30 de 28 de junho de 2015.
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