sábado, 6 de junho de 2015

Brasil Holandês: Futuro do Pretérito

Sempre tão pródigo e eficiente na autodepreciação – cujo reflexo mais perverso e ambíguo talvez se manifeste numa autoindulgência tão nefasta e enganosa quanto o desprezo que devota à própria imagem -, o Brasil enraizou em seu imaginário historiográfico a ideia de que poderia ter-se transformado num paraíso eficiente e produtivo, luzindo ao sol do trópico caso tivesse permanecido sob o domínio holandês, livrando-se da indolente herança lusitana. Além do quadro psicológico tão revelador, que verdades históricas poderiam se esconder atrás desse anseio tão frequente apresentado como fato? Um suposto Brasil holandês seria realmente uma alternativa melhor do que o real Brasil português? Nada permite supor que sim – pelo contrário.
Em 1971, o historiador Mário Neme debruçou-se sobre a questão e, no seu admirável documentado “Fórmulas Políticas do Brasil Holandês”, concluiu que a tese de que os holandeses estavam dispostos a fazer do Brasil uma nação democrática, igualitária e eficiente, nasceu nos textos do frei português Manuel Calado, “comensal confesso do conde de Nassau”.
Em sua monumental História do Brasil, lançada em 1854, Francisco Varnhagen ecoou calado. Mas, conforme Neme, Varnhagen escreveu numa época que “a inteligência nacional está por inteiro predisposta contra Portugal (…) momento em que reação da antiga colônia – tomando consciência plena das oportunidades perdidas -, entra na fase emocional de racionalização de todos os ressentimentos, insuflados pelas lutas da independência, da abolição e da república”. Nada permite supor, seguindo Neme, que um Brasil holandês seria melhor.
Não se trata de opinião solitária. “A ideia de colonização holandesa teria sido superior à portuguesa, pelo senso de organização, nível cultural e grande liberdade, se baseia num preconceito, numa ilusão de ótica e num erro de informação”, escreveram os historiadores Arno e Maria José Wehling em “Formação do Brasil Colonial.” “A ilusão de ótica (…) é admitir a existência de colonizações 'melhores' ou 'piores', quando a natureza da instituição colonial faz com que ela seja objeto - de lucro, em geral, mas também de populações excedentes – e não sujeito da relação”.
O mito de um esplêndido Brasil holandês dificilmente teria um destino fulgurante. Além do mais, como observou o professor Golsalves de Mello, “os holandeses não se tinham apoderado do Brasil com a intenção de colonizar (…) de para aqui se transferir com as famílias e estabelecer um renovo da pátria: movia-os sobretudo o interesse mercantil”. Quando os grandes lucros prometidos pelo açúcar minguaram, os holandeses preferiram abrir mão de suas conquistas. Ao fazê-lo, abandonaram inapelavelmente tapuias e potiguares, seus aliados indígenas de mais de 20 anos, e jamais moveram uma palha para defendê-los.


Os dois aspectos mais conflitantes entre os modelos colonialistas estabelecidos por Holanda e Portugal já foram longamente estudados no Brasil. Já 1907, Capistrano de Abreu observava que o fato de os holandeses dominarem facilmente as cidades do Nordeste e nunca terem conquistado o interior – e a ação inversa posterior: os lusos reconquistavam as zonas rurais, mas eram incapazes de tomar as cidades – revelava que os primeiros eram homens urbanos e os lusos tinham vocação rural. Natural, portanto, que, ao longo do período holandês, estourasse um conflito entre os senhores de engenho luso brasileiros e os comerciantes holandeses e judeus. Na colônia portuguesa, predominavam os interesses dos plantadores; na holandesa, o dos negociantes.


Fonte: História do Brasil (1996), página 64.

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