Sempre
tão pródigo e eficiente na autodepreciação – cujo reflexo mais
perverso e ambíguo talvez se manifeste numa autoindulgência tão
nefasta e enganosa quanto o desprezo que devota à própria imagem -,
o Brasil enraizou em seu imaginário historiográfico a ideia de que
poderia ter-se transformado num paraíso eficiente e produtivo,
luzindo ao sol do trópico caso tivesse permanecido sob o domínio
holandês, livrando-se da indolente herança lusitana. Além do
quadro psicológico tão revelador, que verdades históricas poderiam
se esconder atrás desse anseio tão frequente apresentado como fato?
Um suposto Brasil holandês seria realmente uma alternativa melhor do
que o real Brasil português? Nada permite supor que sim – pelo
contrário.
Em 1971,
o historiador Mário Neme debruçou-se sobre a questão e, no seu
admirável documentado “Fórmulas Políticas do Brasil
Holandês”, concluiu que a tese de que os holandeses estavam
dispostos a fazer do Brasil uma nação democrática, igualitária e
eficiente, nasceu nos textos do frei português Manuel Calado,
“comensal confesso do conde de Nassau”.
Em sua
monumental História do Brasil, lançada em 1854, Francisco
Varnhagen ecoou calado. Mas, conforme Neme, Varnhagen escreveu numa
época que “a inteligência nacional está por inteiro predisposta
contra Portugal (…) momento em que reação da antiga colônia –
tomando consciência plena das oportunidades perdidas -, entra na
fase emocional de racionalização de todos os ressentimentos,
insuflados pelas lutas da independência, da abolição e da
república”. Nada permite supor, seguindo Neme, que um Brasil
holandês seria melhor.
Não se
trata de opinião solitária. “A ideia de colonização holandesa
teria sido superior à portuguesa, pelo senso de organização, nível
cultural e grande liberdade, se baseia num preconceito, numa ilusão
de ótica e num erro de informação”, escreveram os historiadores
Arno e Maria José Wehling em “Formação do Brasil Colonial.”
“A ilusão de ótica (…) é admitir a existência de colonizações
'melhores' ou 'piores', quando a natureza da instituição colonial
faz com que ela seja objeto - de lucro, em geral, mas também de
populações excedentes – e não sujeito da relação”.
O mito
de um esplêndido Brasil holandês dificilmente teria um destino
fulgurante. Além do mais, como observou o professor Golsalves de
Mello, “os holandeses não se tinham apoderado do Brasil com a
intenção de colonizar (…) de para aqui se transferir com as
famílias e estabelecer um renovo da pátria: movia-os sobretudo o
interesse mercantil”. Quando os grandes lucros prometidos pelo
açúcar minguaram, os holandeses preferiram abrir mão de suas
conquistas. Ao fazê-lo, abandonaram inapelavelmente tapuias e
potiguares, seus aliados indígenas de mais de 20 anos, e jamais
moveram uma palha para defendê-los.
Os dois
aspectos mais conflitantes entre os modelos colonialistas
estabelecidos por Holanda e Portugal já foram longamente estudados
no Brasil. Já 1907, Capistrano de Abreu observava que o fato de os
holandeses dominarem facilmente as cidades do Nordeste e nunca terem
conquistado o interior – e a ação inversa posterior: os lusos
reconquistavam as zonas rurais, mas eram incapazes de tomar as
cidades – revelava que os primeiros eram homens urbanos e os lusos
tinham vocação rural. Natural, portanto, que, ao longo do período
holandês, estourasse um conflito entre os senhores de engenho luso
brasileiros e os comerciantes holandeses e judeus. Na colônia
portuguesa, predominavam os interesses dos plantadores; na holandesa,
o dos negociantes.
Fonte:
História do Brasil (1996), página 64.
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