Vila Rica
não é Florença, pedra – sabão não é mármore e Aleijadinho
não foi Michelangelo. Ainda assim, o esplendor e o requinte, as
sutilezas e as suntuosidade das dezenas de estátuas, pias batismais,
púlpitos, brasões, portais, fontes e crucifixos permitem supor que
o Brasil teve um gênio renascentista desgarrado em plena
efervescência de Minas colonial, esculpindo e talhado com o
espírito, o fulgor e a grandiosidade dos artistas iluminados. O
legado do Aleijadinho – eternizado no interior e nas fachadas de
meia dúzia de igrejas de Minas Gerais – refulge mais que os
minérios que saíram dali para fazer o fausto de nações além-mar.
Na prática, foram elas – estátuas, lavabos e esculturas – a
herança que restou para recordar o Brasil de seus tempos áureos. A
obra monumental do Aleijadinho é um patrimônio superior a qualquer
conforto que o ouro possa comprar.
Embora
tenha sido um dos maiores artistas do Brasil, da vida de Aleijadinho
restam apenas fragmentos biográficos dispersos, a maioria deles
envolta na sombra mitificadora das lendas baratas. Sabe-se que se
chamava Antônio Francisco Lisboa e era filho bastardo do “juiz do
ofício de carpinteiro” Manuel Francisco Lisboa com a escrava de
nome Isabel (embora documento algum o comprove. Quando nasceu? Em
1738, talvez, embora a “data oficial” seja 29 de agosto de 1730.
Quem foram seus mestres? O pai e o tio, Antônio Francisco Pombal,
embora alguns preferiam filiá-lo à escola do desenhista João Gomes
Batista e à do entalhador José Coelho de Noronha, portugueses com
“oficinas” em Vila Rica. Quais suas fontes de inspiração? Os
livros da biblioteca do poeta Cláudio Manuel da Costa e “gravuras”
bíblicas góticas bizantinas” da Bíblia Pauperum.
As
dúvidas são muitas porque, quase tudo o que se sabe sobre
Aleijadinho provém de Traços Bibliográficos Relativos ao Finado
Antônio Francisco Lisboa, publicados por Rodrigo Bretas em
1958. Embora tenha escrito apenas 44 anos depois da morte do artista,
os esboços de Bretas estão repletos de impropriedades. Apesar da
biografia referente ao Aleijadinho superar, atualmente, mil títulos
(entre livros e artigos), o estofo da lenda nasceu dos mitos forjados
por Bretas. De qualquer forma, parece certo que, antes da misteriosa
doença que o acometeu, em 1777, Antônio Francisco, além de artista
maduro – cujo primeiro projeto fora a igreja da Ordem Terceira de
São Francisco - , era também “grandemente dado aos vinhos, às
mulheres e aos folguedos”. Seu biógrafo sugere que a enfermidade
surgiu dos “excessos venéreos”. Em fins de 77, o escultor já
perdera os dedos dos pés, “do que resultou não poder andar senão
de joelhos”, e os dedos das mãos se atrofiaram de tal forma que o
artista teria decidido “cortá-los, servindo-se do formão com que
trabalhava”. Não foi só: “perdeu quase todos os dentes e a boca
entortou-se como se sucede ao estuporado; o queixo e o lábio
inferior abateram-se e o olhar do infeliz adquiriu a expressão
sinistra de ferocidade (…) que o deixou de um aspecto asqueroso e
medonho”.
O
Aleijadinho passou a evitar o contato público: ia para o trabalho de
madrugada e só voltava para casa com a noite alta. “Ia sempre a
cavalo, embuçado em ampla capa, chapéu desabatado, fugindo a
encontros e saudações”, escreveu Manuel Bandeira. “No próprio
sítio da obra, ficava a coberto de uma espécie de tenda, e não
gostava de mirones”.
Grandes
artistas brasileiros escreveram sobre o maior dos escultores do país.
Mário de Andrade foi dos primeiros a notar que a “doença dividiu
em duas fases nítidas a obra do Aleijadinho. A fase sã, de Ouro
Preto, se caracteriza pela serenidade equilibrada e pela clareza
magistral. Na fase do enfermo, desaparece aquele sentimento
renascente da fase sã, surge um sentimento muito mais gótico e
expressionista”. De fato, foi em Congonhas, no santuário de Bom
Jesus de Matosinho, já doente e a partir de 1796, que o Aleijadinho
iria consagrar 10 anos àquela que seria a maior obra de sua vida: os
Passos da Paixão (66 monumentais estátuas de cedro representando a
paixão de Cristo) e os 12 Profetas, que “monumentalizam a
paisagem” e são uma “Bíblia de pedra-sabão, banhada no ouro
das Minas”, conforme Oswald de Andrade.
Essas
inigualáveis obras-primas do barroco teriam sido esculpidas com os
formões atados às mãos sem dedos de Aleijadinho, com a ajuda de
seus auxiliares e de seus três escravos (os fiéis Maurício
Januário e Agostinho, que, em crises de dor e fúria, o artista
espancava frequentemente). Embora seus clientes fossem ricos, o
Aleijadinho nunca ganhou muito: seu salário era 1,2 grama de ouro
por dia e ele o dividia com sua equipe, além de ser pródigo em
esmolas. Sua revolta contra os poderosos – a obra de Congonhas foi
iniciada quatro anos após o martírio de Tiradentes – parece
evidente. As razões dela, porém, não eram pessoais. “No
Aleijadinho, o ressentimento tomou a expressão de revolta social, de
vingança de sub-raça oprimida”, escreveu, em 1936, o sociólogo
Gilberto Freyre. “Em sua escultura, as figuras de 'brancos',
'senhores' e 'capitães romanos' parecem deformadas, menos por
devoção a Jesus Cristo e sua raiva de ser mulato e doente (mais)
por sua revolta contra os dominadores da colônia”.
Já
houve quem diagnosticasse no orgulho despertado pela suntuosidade das
obras de Aleijadinho as raízes da revolta da colônia contra a
exploração da metrópole. O gênio coja obra ainda inspira tantas
interpretações, porém, nunca veria um Brasil independente. Depois
de dois anos rolando, aos gritos, sobre um estrado de madeira, com um
dos lados do corpo “horrivelmente chagado”, o Aleijadinho foi,
enfim poupado da agonia no dia 18 de novembro de 1814.
Não se
conhecem as feições verdadeiras do homem que criou os mais
expressivos rostos da estatuária brasileira. Apesar de uma absurda
lei municipal ter decretado, em julho de 1971, que o quadro acima é
o “retrato oficial” do Aleijadinho, não existem provas concretas
de que a obra seja autêntica. Achado em 1916, o retrato não condiz
com as descrições feitas anteriormente.
Passados
mais de 150 anos da morte de Aleijadinho, pesquisadores ainda
discutem qual a doença que acabou com a saúde e o humor do maior
dos escultores brasileiros. Nenhum, porém, teve iniciativa,
disposição ou verba para empreender a investigação que incluísse
a única possibilidade definitiva: a exumação do cadáver do
Aleijadinho. Por enquanto, existem apenas hipóteses sobre a terrível
enfermidade deformante que, a partir de 1777, foi carcomendo pés e
mãos do gênio barroco brasileiro. Em 1929, o médico Rene Laclette
optou por “lera nervosa” como diagnóstico “menos improvável”,
visto que no quadro clínico de Antônio Francisco se encontravam
vários sintomas do mal de Hansen (atrofia dos músculos das mãos,
nevralgias, atrofia do orbicular das pálpebras, paralisia facial,
queda dos dentes). Outra hipótese citada com frequência é a da
zamparina (doença advinda de um surto gripal que irrompeu no Rio em
1780, responsável por alterações no sistema nervoso). As demais
especulações, citadas em mais de 30 estudos, incluem escorbuto,
encefalite e sífilis. O fato é que, além da dor, a doença tornou
o Aleijadinho quase um monstro. Diz a lenda que, depois de ser
chamado de “homem feio” por José Romão, ajudante de ordens do
governador Bernardo Lorena, o artista se vingou esculpindo uma
estátua de São Jorge com a cara “bestificada” de seu desafeto.
O Ouro
na Balança
Total
de ouro extraído de Minas: 874 toneladas em 80 anos (1700 a
1780).
Outras
descobertas: Em Goiás, em 1727, pelo Anhanguera (essas minas
renderam 160 toneladas) e em Mato Grosso, por Moreira Cabral, em 1729
(renderam 60 toneladas)
Consequências
no Brasil: A mudança da capital de Salvador para o Rio, a
ocupação de Minas, Goiás e Mato Grosso e a fermentação da
independência.
Consequências
em Portugal: A Coroa deixou de depender dos favores da corte,
aumentando, seu poder e independência internas. Externamente, após
o tratado de Methuen (1703), Portugal se tornou totalmente dependente
da Inglaterra. Proibido de ter indústrias, o país cederia todo seu
ouro em troca de bens manufaturados.
Quem
mais lucrou no Brasil: O padre Guilherme Pompeu, “que às minas
jamais foi ter”, virou magnata ao se tornar fornecedor e banqueiro
dos bandeirantes.
Quem
mais lucrou em Portugal: Embora a riqueza das minas fizesse que
D. João V fosse chamado de Rei Sol português, foi
depois da morte dele, em 1750, e a consequente ascensão de D. José
I, que chegou ao poder o homem que politicamente, mais se beneficiou
com o ouro brasileiro: o todo-poderoso Marquês do Pombal.
Fonte: História do Brasil (1996), páginas 70 e 71.
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