sábado, 6 de junho de 2015

Aleijadinho e o Esplendor Barroco

Vila Rica não é Florença, pedra – sabão não é mármore e Aleijadinho não foi Michelangelo. Ainda assim, o esplendor e o requinte, as sutilezas e as suntuosidade das dezenas de estátuas, pias batismais, púlpitos, brasões, portais, fontes e crucifixos permitem supor que o Brasil teve um gênio renascentista desgarrado em plena efervescência de Minas colonial, esculpindo e talhado com o espírito, o fulgor e a grandiosidade dos artistas iluminados. O legado do Aleijadinho – eternizado no interior e nas fachadas de meia dúzia de igrejas de Minas Gerais – refulge mais que os minérios que saíram dali para fazer o fausto de nações além-mar. Na prática, foram elas – estátuas, lavabos e esculturas – a herança que restou para recordar o Brasil de seus tempos áureos. A obra monumental do Aleijadinho é um patrimônio superior a qualquer conforto que o ouro possa comprar.
Embora tenha sido um dos maiores artistas do Brasil, da vida de Aleijadinho restam apenas fragmentos biográficos dispersos, a maioria deles envolta na sombra mitificadora das lendas baratas. Sabe-se que se chamava Antônio Francisco Lisboa e era filho bastardo do “juiz do ofício de carpinteiro” Manuel Francisco Lisboa com a escrava de nome Isabel (embora documento algum o comprove. Quando nasceu? Em 1738, talvez, embora a “data oficial” seja 29 de agosto de 1730. Quem foram seus mestres? O pai e o tio, Antônio Francisco Pombal, embora alguns preferiam filiá-lo à escola do desenhista João Gomes Batista e à do entalhador José Coelho de Noronha, portugueses com “oficinas” em Vila Rica. Quais suas fontes de inspiração? Os livros da biblioteca do poeta Cláudio Manuel da Costa e “gravuras” bíblicas góticas bizantinas” da Bíblia Pauperum.
As dúvidas são muitas porque, quase tudo o que se sabe sobre Aleijadinho provém de Traços Bibliográficos Relativos ao Finado Antônio Francisco Lisboa, publicados por Rodrigo Bretas em 1958. Embora tenha escrito apenas 44 anos depois da morte do artista, os esboços de Bretas estão repletos de impropriedades. Apesar da biografia referente ao Aleijadinho superar, atualmente, mil títulos (entre livros e artigos), o estofo da lenda nasceu dos mitos forjados por Bretas. De qualquer forma, parece certo que, antes da misteriosa doença que o acometeu, em 1777, Antônio Francisco, além de artista maduro – cujo primeiro projeto fora a igreja da Ordem Terceira de São Francisco - , era também “grandemente dado aos vinhos, às mulheres e aos folguedos”. Seu biógrafo sugere que a enfermidade surgiu dos “excessos venéreos”. Em fins de 77, o escultor já perdera os dedos dos pés, “do que resultou não poder andar senão de joelhos”, e os dedos das mãos se atrofiaram de tal forma que o artista teria decidido “cortá-los, servindo-se do formão com que trabalhava”. Não foi só: “perdeu quase todos os dentes e a boca entortou-se como se sucede ao estuporado; o queixo e o lábio inferior abateram-se e o olhar do infeliz adquiriu a expressão sinistra de ferocidade (…) que o deixou de um aspecto asqueroso e medonho”.
O Aleijadinho passou a evitar o contato público: ia para o trabalho de madrugada e só voltava para casa com a noite alta. “Ia sempre a cavalo, embuçado em ampla capa, chapéu desabatado, fugindo a encontros e saudações”, escreveu Manuel Bandeira. “No próprio sítio da obra, ficava a coberto de uma espécie de tenda, e não gostava de mirones”.
Grandes artistas brasileiros escreveram sobre o maior dos escultores do país. Mário de Andrade foi dos primeiros a notar que a “doença dividiu em duas fases nítidas a obra do Aleijadinho. A fase sã, de Ouro Preto, se caracteriza pela serenidade equilibrada e pela clareza magistral. Na fase do enfermo, desaparece aquele sentimento renascente da fase sã, surge um sentimento muito mais gótico e expressionista”. De fato, foi em Congonhas, no santuário de Bom Jesus de Matosinho, já doente e a partir de 1796, que o Aleijadinho iria consagrar 10 anos àquela que seria a maior obra de sua vida: os Passos da Paixão (66 monumentais estátuas de cedro representando a paixão de Cristo) e os 12 Profetas, que “monumentalizam a paisagem” e são uma “Bíblia de pedra-sabão, banhada no ouro das Minas”, conforme Oswald de Andrade.
Essas inigualáveis obras-primas do barroco teriam sido esculpidas com os formões atados às mãos sem dedos de Aleijadinho, com a ajuda de seus auxiliares e de seus três escravos (os fiéis Maurício Januário e Agostinho, que, em crises de dor e fúria, o artista espancava frequentemente). Embora seus clientes fossem ricos, o Aleijadinho nunca ganhou muito: seu salário era 1,2 grama de ouro por dia e ele o dividia com sua equipe, além de ser pródigo em esmolas. Sua revolta contra os poderosos – a obra de Congonhas foi iniciada quatro anos após o martírio de Tiradentes – parece evidente. As razões dela, porém, não eram pessoais. “No Aleijadinho, o ressentimento tomou a expressão de revolta social, de vingança de sub-raça oprimida”, escreveu, em 1936, o sociólogo Gilberto Freyre. “Em sua escultura, as figuras de 'brancos', 'senhores' e 'capitães romanos' parecem deformadas, menos por devoção a Jesus Cristo e sua raiva de ser mulato e doente (mais) por sua revolta contra os dominadores da colônia”.

Já houve quem diagnosticasse no orgulho despertado pela suntuosidade das obras de Aleijadinho as raízes da revolta da colônia contra a exploração da metrópole. O gênio coja obra ainda inspira tantas interpretações, porém, nunca veria um Brasil independente. Depois de dois anos rolando, aos gritos, sobre um estrado de madeira, com um dos lados do corpo “horrivelmente chagado”, o Aleijadinho foi, enfim poupado da agonia no dia 18 de novembro de 1814.



Não se conhecem as feições verdadeiras do homem que criou os mais expressivos rostos da estatuária brasileira. Apesar de uma absurda lei municipal ter decretado, em julho de 1971, que o quadro acima é o “retrato oficial” do Aleijadinho, não existem provas concretas de que a obra seja autêntica. Achado em 1916, o retrato não condiz com as descrições feitas anteriormente.


Passados mais de 150 anos da morte de Aleijadinho, pesquisadores ainda discutem qual a doença que acabou com a saúde e o humor do maior dos escultores brasileiros. Nenhum, porém, teve iniciativa, disposição ou verba para empreender a investigação que incluísse a única possibilidade definitiva: a exumação do cadáver do Aleijadinho. Por enquanto, existem apenas hipóteses sobre a terrível enfermidade deformante que, a partir de 1777, foi carcomendo pés e mãos do gênio barroco brasileiro. Em 1929, o médico Rene Laclette optou por “lera nervosa” como diagnóstico “menos improvável”, visto que no quadro clínico de Antônio Francisco se encontravam vários sintomas do mal de Hansen (atrofia dos músculos das mãos, nevralgias, atrofia do orbicular das pálpebras, paralisia facial, queda dos dentes). Outra hipótese citada com frequência é a da zamparina (doença advinda de um surto gripal que irrompeu no Rio em 1780, responsável por alterações no sistema nervoso). As demais especulações, citadas em mais de 30 estudos, incluem escorbuto, encefalite e sífilis. O fato é que, além da dor, a doença tornou o Aleijadinho quase um monstro. Diz a lenda que, depois de ser chamado de “homem feio” por José Romão, ajudante de ordens do governador Bernardo Lorena, o artista se vingou esculpindo uma estátua de São Jorge com a cara “bestificada” de seu desafeto.


O Ouro na Balança

Total de ouro extraído de Minas: 874 toneladas em 80 anos (1700 a 1780).

Outras descobertas: Em Goiás, em 1727, pelo Anhanguera (essas minas renderam 160 toneladas) e em Mato Grosso, por Moreira Cabral, em 1729 (renderam 60 toneladas)

Consequências no Brasil: A mudança da capital de Salvador para o Rio, a ocupação de Minas, Goiás e Mato Grosso e a fermentação da independência.

Consequências em Portugal: A Coroa deixou de depender dos favores da corte, aumentando, seu poder e independência internas. Externamente, após o tratado de Methuen (1703), Portugal se tornou totalmente dependente da Inglaterra. Proibido de ter indústrias, o país cederia todo seu ouro em troca de bens manufaturados.

Quem mais lucrou no Brasil: O padre Guilherme Pompeu, “que às minas jamais foi ter”, virou magnata ao se tornar fornecedor e banqueiro dos bandeirantes.

Quem mais lucrou em Portugal: Embora a riqueza das minas fizesse que D. João V fosse chamado de Rei Sol português, foi depois da morte dele, em 1750, e a consequente ascensão de D. José I, que chegou ao poder o homem que politicamente, mais se beneficiou com o ouro brasileiro: o todo-poderoso Marquês do Pombal.

Fonte: História do Brasil (1996), páginas 70 e 71.

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