Introdução
Para entendermos a
Guerra dos Canudos e a violência com que foi esmagada a revolta
camponesa é preciso restabelecer o cenário histórico em que ela
ocorreu. Não pode-se entender Canudos isoladamente, sem conhecer as
circunstâncias históricas e políticas que a provocaram.
O Brasil estava em
permanente ebulição, desde 13 de maio de 1888 com a assinatura da
Lei Áurea pela princesa Isabel, acontecimentos espetaculares e
traumáticos se sucediam um ao outro. A Questão Militar que vinha se
arrastando desde 1883, com o debate em torno da doutrina do soldado
cidadão, que defendia a participação dos oficiais nas questões
políticas e sociais do país, teve uma condução repentina, com o
golpe militar republicano de 15 de novembro de 1889.
A derrubada da
Monarquia, que de imediato foi sem derramamento de sangue, terminou
por provocar reações antirrepublicanas. Uma nova constituição foi
aprovada em 1891, tornando o Brasil uma república federativa e
presidencialista no modelo norte-americano. Separou-se o estado da
Igreja ( o que vai provocar a indignação de Antônio Conselheiro) e
ampliou-se o direito de voto (aboliu-se o sistema censitário
existente no Império e permitiu-se que todo o cidadão alfabetizado
pudesse tornar-se cidadão).
As dificuldades
políticas da implantação da República se aceleraram com a crise
inflacionária provocada pelo Encilhamento, quando o Ministro da
Fazenda, Rui Barbosa, autorizou um aumento de 75% na emissão de
papel moeda nacional. Houve muito desgaste do novo regime devido ao
clima de especulação e de multiplicação de empresas sem lastro
(mais de 300 em um ano apenas). O presidente da República, Mal.
Deodoro da Fonseca chegou a fechar o Congresso, o que serviu de
pretexto para a Marinha de Guerra rebelar-se exigindo e conseguindo
sua renúncia, o que ocorreu em 23 de novembro de 1891. Deodoro
doente retirou-se, sendo substituído pelo vice-presidente Mal.
Floriano Peixoto.
Em fevereiro de 1893
estoura no Rio Grande do Sul a revolução federalista, quando
maragatos insurgem-se contra o governo de Júlio de Castilhos,
conduzindo o estado a uma dolorosa guerra civil. Neste mesmo ano em
setembro, ocorre o segundo levante da Armada, novamente liderado pelo
A. Custódio de Melo, seguida pela adesão do Al. Saldanha da Gama,
que chega a bombardear o Rio de Janeiro, Floriano Peixoto mobiliza a
população para a defesa da capital e Custódio de Melo resolve
abandonar a baía de Guanabara para juntar-se aos maragatos que
haviam ocupado Desterro (em Santa Catarina). A guerra no sul
militarmente se encerra com a morte de Gumercindo Saraiva o
guerrilheiro maragato em 1894, e com a derrota da incursão do Al.
Saldanha da Gama na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai em
1895. A guerra tinha produzido mais de 12 mil mortos em uma parte
deles havia sido vítima de degolas de parte a parte. Coube ao novo
presidente, Prudente de Morais, alcançar a pacificação que é
assinada em Pelotas em agosto de 1895.
Foi nesse pano de
fundo turbulento, marcado por transformações repentinas e radicais,
pela abolição da escravidão, pelo golpe republicano, pelo
fechamento do Congresso, pelo estado de sítio, por dois levantes da
Armada e por uma cruel Guerra Civil, que a população urbana ouviu
com espanto a notícia, em novembro de 1896, de que uma expedição
de 100 soldados havia sido derrotada pelos jagunços do interior da
Bahia. Começava então a Guerra dos Canudos.
A Guerra de Canudos
(1896-1897)
Provavelmente se o
quadro político brasileiro dos primeiros anos de República não
fosse tão conturbado talvez os episódios de Canudos tivessem outro
desenlace. Mas a notícia de que tropas regulares haviam sido
desbaratadas pelos fiéis do Conselheiro fez com que as autoridades e
a própria população dos grandes centros urbanos, particularmente
do Rio de Janeiro, visse naquilo a mão ardilosa dos monarquistas.
Se por um lado era
evidente que o Conselheiro regava contra a república, estimulando a
que não se lhe pagassem tributos e até espantasse os funcionários
que representavam a justiça e o casamento civil, não pode-se negar
seu conteúdo religioso. Canudos assemelha-se às incontáveis
rebeliões religiosas, lideradas por fanáticos, chamados de
profetas, que se dizem enviados ou mensageiros do céus. Reúnem ao
seu redor um bando de crentes aos quais pe assegurada não só a
salvação como muitas vezes a imortalidade.
Repudiam todo mundo ao
seu redor, denunciando como corrupto e de estar a serviço das forças
demoníacas. Só os justos se salvarão. Só aqueles que se dedicam
inteiramente as rezas e a comunidade dos crentes serão eleitos. Seu
comportamento erradio e agressivo para com os outros e seu fanatismo
militante faz com que se indisponham com o resto da sociedade. Os
atritos daí decorrentes, fazem com que a polícia ou a milícia
termine por se envolver com eles. As tentativas de apaziguamento
fracassam. Eles resistem a qualquer de dispensar. Ao contrário, a
presença das autoridades faz com que se aglutinem com maior fervor
em torno do profeta. Armam-se. O profeta lhe assegura que caso
morreram na defesa da Nova Jerusalém, Jesus lhes garantirá a vida
por mais mil anos ainda.
Antônio Conselheiro
e Nova Jerusalém
Antônio Conselheiro
já era uma figura bastante conhecida nos sertões nordestinos desde
a década de 1870. Era caixeiro de loja e graças a uma infelicidade
pessoal – foi abandonado pela mulher – partiu para uma vida de
eremita, cruzando o sertão de cima a baixo. Por onde andava
procurava consertar os cemitérios e melhorar as igrejas. A fama de
suas prédicas começou a se espalhar e gente miserável começou a
segui-lo. Sua aparência assemelhava-se aos profetas bíblicos, com
uma vasta cabeleira que lhe caia pelos ombros e vestido com um brim
comprido que lhe chegava aos pés e um cajado nas mãos. Parecia um
personagem saído diretamente das Velhas Escrituras.
Hostilizado pela
maioria dos padres do interior que não lhe suportavam a concorrência
e a crescente popularidade, o Conselheiro resolveu, em 1893,
isolar-se em Canudos, um lugarejo paupérrimo, nas margens do rio
Vaza-barris, no sertão baiano. Rebatizou-a de Monte Santo. Em pouco
tempo um fluxo constante de romeiros para lá se dirigiu. O
Conselheiro rejeitava a república. Considerava-a coisa satânica por
ter instituído o casamento civil. Como a Igreja Católica
acomodou-se com a nova ordem, coube a ele liderar a rebeldia.
Tratava-se de constituir uma outra sociedade, onde os princípios
dogmáticos da religião seriam estritamente obedecidos. Não se
bebia em Canudos, e o maior delito era não comparecer as rezas
coletivas. Também serviu de abrigo a marginais e bandidos que lá
procuravam refúgio e de onde saíam para novos barbarismos.
Em pouco tempo o
Conselheiro formou uma espécie de pequeno estado dentro do estado.
As autoridades fizeram então uma frente. Coronéis assustados com a
fuga de mão de obra e com o surgimento de uma outra liderança
aproximava-se da igreja que via nele um herético. Um desentendimento
com um lugarejo vizinho foi o pretexto que as autoridades aguardavam
para mandar intervir militarmente. No início de novembro de 1896 uma
força de 100 praças, sob o comando do Ten. Manuel Ferreira, foi
enviada para Juazeiro e depois para Uauá onde é destroçada pelo
ataque dos jagunços em 21 de novembro.
Foram necessárias
mais três expedições militares, a última com quase 5 mil homens e
artilharia para submeter a “Tróia de taipa”. A população lutou
até o fim. Umas 300 mulheres, velhos e crianças se renderam. Os
homens sobreviventes foram degolados e os que resistiram até o fim
foram baionetados numa luta corpo a corpo que se travou dentro do
arraial, no dia do assalto final, em 5 de outubro de 1897. antônio
Conselheiro, morto em 22 de setembro, teve seu corpo exumado e sua
cabeça decepada para estudos frenológicos. O Gen. Artur Oscar
determinou que os 5.200 casebres fossem pulverizados a dinamite. E
assim, onze meses depois do entrevero de Uauá, terminou Canudos.
As quatro campanhas
contra Canudos
Campanhas
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Acontecimentos
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1ª Campanha: 4 a 21 de novembro de 1896
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Governador da Bahia ordena expedição para
defesa de Juazeiro ameaçada pelos jagunços de Antônio
Conselheiro. Expedição com 100 praças comandada pelo ten.
Manuel Ferreira. Segue até Uauá onde é derrotada na madrugada
pelos jagunços no dia 21 de outubro. O médico enlouquece.
Retirada para Juazeiro.
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2ª Campanha: 25 de outubro de 1896 a 20 de
janeiro de 1897
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Comandada pelo Major Frebônio de Brito, com
543 praças e 14 oficiais e 3 médicos. Travessia do Cambaio,
primeiro e segundo combate. Mais de 400 jagunços mortos. Retirada
em frente a Canudos, para Monte Santo. Militares vaiados.
Debandada geral.
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3ª Campanha: 8 de fevereiro a 3 de março de
1897
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Expedição Moreira César. Chega a Queimadas
com 1.300 homens. Chega a Monte Santo e dali para Canudos. Assalto
ao arraial em 2 de março. Morte de Moreira César. Expedição
dissolvida bate em retirada.
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4ª Campanha: 16 de junho a 5 de outubro de
1897
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Expedição comandada pelo Ge. Artur Oscar,
dividida em duas colunas (gen. João Barbosa e Amaral Savaget),
uma com 1.933 homens e outra com 2.350. Combate de Cocorobó. Duas
colunas chegam a Canudos. Assalto ao arraial: 947 baixas. Chegam
esforços de 2 brigadas da Bahia. Bombardeio sobre Canudos.
Combate de Coxomongo. Morre Antônio Conselheiro no dia 22. No dia
24 de setembro Canudos encontra-se sitiada. Assalto final em 1º
de outubro: 567 baixas. 300 prisioneiros (mulheres, velhos e
crianças), dia 5 morrem os 4 últimos resistentes. As 5.200 casas
são dinamitadas.
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A Guerra dos Canudos
e “Sertões”
“Os Sertões”
Nenhum outro episódio
da história nacional até então ocorrido (Inconfidência mineira,
independência, Revolta dos Cabanos, a Sabinada, a Praieira, a
Revolução Farroupilha, etc...) gerou um relato literário e épico
da dimensão de “Os Sertões” de Euclides da Cunha, publicado em
1902. Euclides havia sido enviado em setembro de 1897 para cobrir
pelo jornal “O Estado de São Paulo” os acontecimentos de
Canudos. Lá chegando resolveu torná-lo tema de um livro. Sua ideia
era inserir aquele conflito nos fins de mundo do Brasil no cenário
dos grandes enfrentamentos históricos. Numa luta titânica de raças,
num combate entre o progresso e o atraso. Percebeu o conflito
primeiramente como uma Vendeia (“a nossa Vendeia”), aquela
rebelião reacionária – de padres, nobres e camponeses católicos
– que eclodiu na Bretanha em 1793, contra o governo republicano
jacobino durante a Revolução Francesa.
Mas viu também a
oportunidade de estudar e conhecer o Brasil. Concentrou sua atenção
em revelar o conflito entre o litoral brasileiro, urbano,
pré-industrial, semi-capitalista, europeizado, predominantemente
branco e racionalista, contra o sertão mestiço, povoado por uma
sub-raça miserável – devido as inclemências do clima – às
influências do fanatismo religioso, vivendo num universo místico
enfeitiçado por superstições atávicas, crentes em milagres e em
espantosos taumaturgos, Euclides achava que a campanha contra Canudos
simbolizava de certa forma a tentativa de civilizar o sertão ainda
que fosse “a pranchaços”.
Na primeira parte do
livro – a Terra – ele procura descrever o cenário geográfico em
que surge o sertanejo. Faz uma erudita exposição dos elementos
geoclimáticos que compõe o sertão. Profundamente influenciado pelo
historiador positivista Hippolyte Taine (1828-1893), que propunha uma
abordagem do comportamento humano condicionado pela raça, pelo meio
e pelas circunstâncias (la race, le milieu et le moment), Euclides
acredita – na sua segunda parte, dedicada ao Homem – que a
intensa miscigenação é a principal responsável pelo atraso e pelo
fanatismo do sertanejo, na medida em que termina por produzir uma
subraça. Mas mesmo assim ele não poupa louvores a bravura da gente
do sertão em conseguir sobreviver numa região tão inóspita,
flagelada pela fome e pela seca - “o sertanejo antes de tudo é um
forte!”
Na terceira parte –
a Luta – dedicada ao combate entre as forças regulares do exército
e as hordas dos jagunços é que brota a espantosa prosa épica de
Euclides. O relato dos enfrentamentos, dos entreveros, os sítios, o
combate corpo a corpo, a valentia e a covardia, os sofrimentos e a
incrível narrativa final da destruição de Canudos, tornam-se
páginas dignas de figurar entre a melhor literatura do mundo, no
mesmo nível de Homero ou do “Guerra e paz” de Tolstoi.
Características
gerais
Em primeiro lugar “Os
Sertões” é uma obra de arte literária. Apesar dos esforços de
Euclides em se tornar o primeiro pensador do país, seu livro perdura
nos tempos por ser geográfico e racial, hoje estão desacreditados.
Restou, portanto, a qualidade narrativa e o estilo ímpar dele. É
uma obra fechada. Euclides não fez uma escola como Machado de Assis.
Sua prosa foi esculpida exatamente para escrever aquele tipo de livro
e nenhum outro mais. Também os críticos debatem sobre que tipo de
livro e nenhum outro mais. Também os críticos debatem sobre que
tipo de gênero literário classifica-se “Os Sertões”. Pode ser
lido como uma grande crônica, um diário de guerra, um tratado
histórico, um ensaio antropológico sociológico, uma peça
literária e até como um discurso forense. Nele encontramos todos os
elementos literários – a lírica, a epopeia e a dramática –
onde palavras desusadas e arcaicas encontram-se misturadas com o
linguajar popular e com expressões científicas.
Ele tentou olhar o
sertão e seu habitantes com as lunetas de um cientista mas recorreu
a um estilo dramático para exprimir sua emoção. Eu clides é o
nosso Homero. Realizou o grande épico nacional. Mas não é popular
como Homero o foi. E a razão é de que ele não dirigiu-se ao povo,
mas sim as elites. Seu livro aos poucos vai tomando a forma de uma
denúncia. Do absurdo da guerra (“Além disso a guerra é uma coisa
monstruosa e ilógica em tudo”) em si até indignar-se com os
barbarismos cometidos pelas tropas conta aqueles pobres-diabos
(“Ademais entalhava-se o cerne da nacionalidade. Atacava-se cerne
da nacionalidade. Atacava-se a fundo a rocha vida da nossa raça.
Vinha de molde a dinamite. Era uma consagração”).
Seu objetivo era
apelar às elites brasileiras para que tivessem uma compreensão
melhor dos sertanejos. Ao descrever seu espaço e seus costumes, ao
relatar suas dificuldades e seu infeliz destino biológico, ele
espera atenuar o preconceito contra os bárbaros interioranos,
isolados do mundo a trezentos anos. Da mesma maneira que Cesare
Lombroso (1836-1909) encontrara nos traços fisionômicos dos
marginais os sinais de delinquência e de degenerescência moral,
Euclides, ao descrever o sertanejo como resultado da seca, do solo
áspero e esturrado, de fome endêmica e da excessiva miscigenação,
queria demonstrar que o resultado final não poderia ser outro.
Conforme o livro vai
se aproximando do final, cresce nele a sensação de que a guerra
contra os jagunços foi um grande equivoco, que afinal de contas era
uma guerra fratricida e que de certa forma o litoral – civilizado e
racional – apunhalava a própria essência do país ao destruir com
o arraial e seus moradores.
A obra, no entanto,
não teve consequências políticas. Foi vista mais como uma
obra-prima do que um manifesto a favor da tolerância para com os
desgraçados do campo.
O Messianismo
O
movimento sertanejo ao redor de Antônio Conselheiro em Canudos teve
uma forte conotação messiânica. Esse tipo de fenômeno sócio
religioso ocorre geralmente
em situações de grave
crise política (ameaça, invasões, bruca mudança de regime,
etc...) e reflete um desespero e um temor crescente e insuportável,
uma crença nas proximidades do Juízo Final e na necessidad da
chegada de um salvador (messias) para resgatar a comunidade em erigo
de morte.
“O messias é
alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre
o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o
advento do Paraíso Terrestre, tratando-se pois de um líder
religioso e social” (Maria Isaura, p. 27). Obviamente que esse
líder não é uma pessoa qualquer, mas sim alguém que revelou ter
“qualidades pessoais extraordinárias, provadas por meio de
faculdades mágicas que lhe dão autoridade; trata-se pois de um
líder essencialmente carismático”. (idem, p. 27).
O referencial mais
remoto que anuncia a chegada desse salvador encontra-se numa passagem
de Isaias: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e
uma luz brilhou para os que habitavam o país tenebroso.
Multiplicaste o povo, aumentaste o teu prazer. Vão alegrar-se de ti,
como na laegria da colheita, como no prazer dos que repartem despojos
de guerra. Porque como no dia de Madjiã, quebraste a canga de suas
cargas, a vara que batiam em suas costas e o bastão do capataz de
trabalhos foçados. Porque toda a bota que pisa com barulho e toda
capa empatada de sangue serão queimadas, devoradas pelas chamas.
Porque nasceu para
nós um menino, um filho foi dado: sobre seu ombro está o manto
real, e eles se chamam: “Conselheiro Maravilhoso” … Grande será
seu domínio, e a paz não terá fim sobre o trono de Davi e seu
reino, firmado e reforçado com direito e a justiça, desde agora e
sempre. O zelo de Javé dos exércitos é que realizará isso”.
(Isaias, 9).
A
isso juntam-se as passagens do Apocalipse que relatam o retorno de
Jesus como um vingador do povo humilhado,
como um guerreiro que vem formar um novo exército de santos e que
garantirá a todos que atenderem a sua mensagem de salvação a
imortalidade por mil anos: “... parecia um filho do
Homem, vestindo uma longa túnica; no peito, um cinto de ouro; nos
cabelos brancos como lã, como neve; os olhos pareciam uma chama de
fogo; os pés eram como bronze de forno, cor de brasa; a voz era como
um estrondo de águas torrenciais; na mão tinha sete estrelas; de
uma boca saía uma espada afiada, de dois cortes; seu rosto era como
um sol brilhando ao meio-dia.
Não tenha medo eu
sou o Primeiro e o Último. Sou o Vivente. Estive morto, mas estou
vivo para sempre. Tenho as chaves da morte e da morada dos mortos”.
(Apocalipse, 1)
Formado
o grupo de fiéis em torno do novo messias eles passam a sentir-se
perseguidos pelas autoridades a quem consideram como o Anticristo ou
de estar a serviço do próprio demônio. Refugiam-se em algum lugar
– a Nova Jerusalém – e preparam-se para resistir ao Mal. Ali se
dará a batalha final. Não se importam em morrer porque o messias
lhes garante vida eterna caso sejam atingidos. Viverão ao lado do
senhor por outros mil anos: “Esse louco – o Anticristo
– na sua cólera implacável conduzirá um exército e cercará a
montanha onde os justos procurarão refúgio. E quando esses se
sentirem cercados, clamarão pelo Senhor por auxílio e Deus há de
ouvi-los e enviar-lhes-á um libertador (…) e toda a multidão de
ateus será aniquilada e correrão rios de sangue”.
(Lactâncio, século IV).
O
Sebastianismo
O
Sebastianismo foi um movimento místico secular que ocorreu em
Portugal na segunda metade do século XVI como consequência da morte
do rei D. Sebastião na batalha de AlcacerQuibir, em 1758. Por falta
de herdeiros, o trono português terminou nas mãos do rei espanhol
Felipe II. Apesar do corpo do rei ter sido removido para Belém o
povo nunca aceitou o fato divulgado a lenda de que o rei
encontrava-se ainda vivo, apenas esperando o momento certo para
volver o trono e afastar o domínio estrangeiro. Se mais popular
divulgador foi o poeta Bandarra que produziu incansáveis versos
clamando pelo retorno do Desejado. Explorando a crendice popular
vários oportunistas se apresentavam como o rei oculto na tentativa
de obter benefícios pessoais. O maior intelectual e aderir ao
movimento foi o Padre Vieira. Finalmente em 1640, pelo golpe
restauracionista liderado pelos Braganças, no Porto, Portugal voltou
a ser independente e o movimento começou a arrefecer no interior do
Nordeste, também ser motivo da crença na chegada de um “rei bom”.
Basicamente é um messianismo adaptado às lusas e depois
nordestinas. Traduz uma inconformidade com a situação política
vigente e uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa,
através da ressurreição de um morto ilustre.
O
Conselheiro
(trechos
selecionados da obra de Euclides da Cunha)
“As fases
singulares da sua existência não são talvez, períodos sucessivos
de uma moléstia grave, mas são com certeza, resumo abreviado dos
aspectos predominantes de mal gravíssimo. Por isso o infeliz,
destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência
superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História
como poderia ter ido para o hospício.”
(p. 111)
(,,,) “Todas as
crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações
católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores,
livremente exercitadas na vida sertaneja, se condensaram no seu
misticismo feroz e extravagante.” (p.
111)
“Antônio
Conselheiro foi um gnóstico bronco”
(p. 113)
“ A sua frágil
consciência oscilava … entre o bom senso e a insônia. Paroi aí
indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona
mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores
brilhantes e aleijões tacanhos e se acotovelam gênios e
degenerados. Não transpôs.”
(p. 114).
“No seio de uma
sociedade primitiva, que pelas qualidades étnicas e influxo das
santas missões malévolas compreendidas melhor a vida pelo
incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de
não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez o temperamento
delirante.” (p. 121).
As prédicas do
Conselheiro
“Ele ali subia e
pregava. Era assombroso... Uma oratória bárbara e arrepiadora,
feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, obstrusa,
agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas;
transcorrendo em frase sacudidas; misto inextricável e confuso de
conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de
profecias esdrúxulas...
Era truanesco e era
pavoroso.
Imagine-se um bufão
arrebatado numa visão do Apocalipse...
(…) A multidão
sucumbida abaixava, por sua vez, as visitas, fascinada, sob estranho
hipnotismo daquela insânia formidável.
E o grande
desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre:
conseguia não se
tornar ridículo... (p. 126)
Antônio Conselheiro
“Espécie de
grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no misticismo
doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente
doentio de nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo não
porque dominasse, mas porque o dominavam as aberrações daquele.
Favorecia-o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos, o absurdo
de ser útil” (p.132).
Anti-republicano
“Viu a república
com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis.
Assumiu desde 1893 uma feição de combate inteiramente nova (…) Ao
surgir essa novidade (editais para a cobrança de impostos que
visavam a autonomia municipal) Antônio Conselheiro estava em Bom
Conselho. Irritou-o a imposição: e planeou revide imediato. Reuniu
o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de
foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo …
pregou abertamente a insurreição contra as leis.” (p. 133).
Canudos
“Era um lugar
sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do
governo maldito” (p. 35).
“A urbs
monstruosa, de barro, definia bem as civitas sinistras do erro. O
novo povoado surgia, dentro de algumas semanas já feito ruínas.
Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelo cômoros, atulhando as
canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos
pendores – tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo
houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto”
(p. 136)
“ Não distinguiam
as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos,
mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso,
testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras orientando-se para
todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construídos, febrilmente,
numa noite, por uma multidão de loucos … (p. 138).
“[os casebres]
Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros de barro, sobre
ramos de iço, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traiam
a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. (…). O
mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante,
traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a
decrepitude da raça.” (p. 138).
“Canudos, imunda
ante sala do Paraíso” (p. 147)
O jagunço
“Na falta de uma
irmandade de sangue, a consanguinidade moral dera-lhe a forma exata
de um clã, em que as leis era o arbítrio do chefe e a justiça as
suas decisões, irrevogáveis. Canudos estereotipava o fácies dúbio
dos primeiros agrupamentos bárbaros. O sertanejo simples
transmudava-se penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto.
Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então
consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões de refregas
eleitorais e saqueadores de cidades – jagunços.” (p. 141).
“Os jagunços
errantes ali armavam (em Canudos) pela derradeira vez as tendas, na
romaria miraculosa para os céus...” (p. 142).
“A nossa
civilização de empréstimo arregimentava, como sempre fez, o
banditismo sertanejo.” (p. 145).
“Delineara-a o
próprio Conselheiro, velho arquiteto de igrejas, requintara no
monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o
levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções,
sem regras; estilo indecifrável, mascarada de frisos grosseiros e
volutas impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas;
rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe
brutal, feito a testada de um hipogue desenterrado; como se tentasse
objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito
delirante”. (p. 147)
O Coronel Moreira
César (comandante da 3ª expedição)
“Surpreendiam-se
igualmente ao vê-lo admiradores e adversários. O aspecto
reduzia-lhe a fama, de figura diminuta – um tórax desfriado sobre
pernas arcadas em parêntesis – era organicamente inapto a carreira
que abraçara” (p.222).
(…) Tinha o
temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo
a instabilidade nervosa de doente grava em placidez enganadora.”
(p.223).
(*) Todos esses trechos
foram extraídos da 27ª edição de “Os Sertões” da Livraria
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1968.
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Primeira República. Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1969.
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Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. Editora Paz e Terra, Rio de
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História da Inteligência Brasileira, (1897-1914). Editora Cultrix,
São Paulo, 1978, v. V.
NOGUEIRA, Ataliba,
Antônio Conselheiro e Canudos. Cia. Editora Nacional, São Paulo,
1974.
QUEIROZ, Maria Isaura
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RABELLO, Sylvio.
Euclides da Cunha. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
1966, 2ª ed.
SILVA, HÉLIO. 1889: A
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ZILLY, Bertold. Um
depoimento brasileiro para a História Universal. Revista Humbolt, n.
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Fonte: História por
Voltaire Schilling
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