sábado, 6 de junho de 2015

A febre do ouro

Ainda que a literatura e o cinema brasileiros pouco tenham utilizado a corrida do ouro de Minas Gerais como matéria-prima para um romance ou filme, a auri saca fames que inflamou espíritos foi admiravelmente descrita pelo jesuíta italiano João Antônio Andreoni em seu extraordinário Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas, escrito sob o pseudônimo André João Antonil. Embora não tratasse apenas das minas (que só ocupam um quarto do livro e onde Antonil nunca esteve), o livro faz sua mais vívida descrição delas. Lançado em 6 de março de 1711, foi proibido 10 dias depois e teve sua primeira edição destruída. O livro só voltou a ser publicado em 1898, depois de Capistrano de Abreu ter descoberto que Antonil e Andreoni (nascido em Luca em 1649 e morto em 1716) eram a mesma pessoa. Quando Cultura e Opulência do Brasil foi lançado, as autoridades perceberam que o texto aumentaria o já controlável fluxo de migrantes. Pelo que escreveu, Andreoni sabia disso:
“A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a manterem-se por caminhos tão ásperos, como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do mínimo das pessoas que atualmente lá estão. (…) Dizem que mais de 30 mil almas se ocupam, umas em catar, outras em mandar catar nos ribeiros do ouro; outras em negociar, vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para regalo, mais que nos postos de mar. Cada ano vêm nas frotas quantidades de portugueses e estrangeiros. Das cidades, vilas recôncavos e sertões do Brasil vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios de que os paulistas se servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres, moços e velhos, pobres e ricos, nobres e plebeus, padres e clérigos”.
Graças ao relato minucioso de Andreoni (Antonil, sabe-se também como eram exploradas e distribuídas as minas. O ouro descoberto estava, de fato, quase à flor da terra – em sua maior parte, foi explorado em aluviões, nas areias e cascalhos dos rios, “numa autêntica catagem, que só necessitava braço humano, sem jeito especial ou inteligência amestrada”. A legislação real estabeleça que os descobridores de cada jazida cabiam duas datas (pequenas extensões de terra aurífera à beira dos rios) de 900 braças (4.356 metros quadrados). Uma data do mesmo tamanho seria reservada à Coroa. As demais datas (de igual dimensão) seriam repetidas entre os mineradores que possuíssem pelo menos 12 escravos. Aos mineiros com menos numero de escravos eram entregues datas de 25 braças por escravo. Dispositivos legais posteriores dispunham sobre o direito dos mineradores ao corte de madeira e à repartição das águas. Quando a exploração iniciava, os cursos dos rios eram desviados, separando-se trechos de seus leitos por uma ensecadeira. Cavadeira e almo cafre eram os utensílios mais utilizados no desprendimento do cascalho, mas eram as bateias, as gamelas e os pratos os instrumentos finais para a “apuração” do ouro. De início, o grosso dos escravos levados às minas era de índios “domésticos” capturados pelos paulistas. Eles logo se finaram. Em março de 1709, D. João V assinou um alvará “franqueando” o tráfico de africanos aos paulistas (até então limitado a 200 por ano). Em 1738, já 101.477 escravos labutavam nas minas.
“O trabalho da bateia e do carumbé, do almocafre e dá pá foram operações que converteram o Brasil das minas em um super inferno de negros, perto do qual o dos engenhos e fornalhas de açúcar, por Antonil apontado, não passou de indulgente purgatório, escreveu Afonso Taunay.


Fonte: História do Brasil (1996), página 68.

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