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domingo, 28 de junho de 2015

A Escravidão

Terá sido o pior lugar do mundo, o ventre da besta e o bojo da fera, embora para aqueles que eram responsáveis por ele, e não estavam lá, fosse também o mais lucrativo dos depósitos e o mais vendável dos estoques. No porão dos navios negreiros que por mais de 300 anos cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma viagem sem volta, cujos horrores geraram fortunas fabulosas, ergueram impérios familiares construíram uma nação. O bojo dos navios da danação e da morte foi o ventre da besta mercantilista: uma máquina de moer carne humana, funcionando incessantemente para alimentar as plantações e os engenhos, as minas e as mesas, a casa e a cama dos senhores – e, mais do que tudo, os cofres dos traficantes de homens.
A cena foi minuciosamente descrita por centenas de observadores. Quanto mais são os depoimentos confrontados, mais difícil é crer que tamanhos horrores possam ter se prolongado por três séculos – e que tantos sobrenomes famosos tenham seu fausto e suas glórias vinculados a tantas desgraças. Mas assim foi, e assim teria sido por mais tempo se, por circunstâncias meramente econômicas, a escravidão não deixasse de ser um negócio tão lucrativo.
Castro Alves compôs versos repletos de fulgor e fúria. Rugendas usou cores fortes e criou um retrato com rigor antropológico. Ainda assim, ambos, poeta e ilustrador, talvez tenham transmitido uma versão branda do espetáculo hediondo que de fato se desenrolava no porão dos negreiros. Os registros escritos por observadores – a maioria deles britânicos – revela um quadro ainda mais assustador do que aquele que as rimas e as tintas puderam pintar.

Era um sonho dantesco!...
O tombadilho, que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar
Tinir de ferros...
estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar (…)
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura.. se é verdade
Tanto horror perante os céus?

CASTRO ALVES

Um só exemplo. Em 1841, a belonave inglesa Fawn capturou, na costa brasileira, o navio Dois de Fevereiro. Desde 7 de novembro de 1831, o tráfico era ilegal no Brasil e navios de guerra britânicos patrulhavam o litoral. Após a apreensão do negreiro, o capitão do Fawn anotou, no diário de bordo, o que viu nos porões: “Os vivos, moribundos e os mortos amontoados numa única massa. Alguns desafortunados no mais lamentável estado de varíola, doentes com oftalmia, alguns completamente cegos; outros, esqueletos vivos, arrastando-se com dificuldade, incapazes de suportares o peso de seus corpos miseráveis. Mães com crianças pequenas penduradas em seus peitos, incapazes de darem a elas uma gota de alimento. Como os tinham trazidos até aquele ponto era surpreendente: todos estavam completamente nus. Seus membros tinham escoriações por terem estado deitados sobre o assoalho durante tanto tempo. No compartimento inferior o maus cheiro era insuportável. Parecia inacreditável que seres humanos sobrevivessem naquela atmosfera”. Na verdade, um em cada cinco escravos embarcados na África não sobrevivia a viagem ao Brasil. Os demais não viviam mais do que sete anos, em média.
Mas eram baratos e substituíveis. Esse é um país erguido sobre três milhões de cadáveres.


Fonte: História do Brasil (1996), página 73.  

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