Terá
sido o pior lugar do mundo, o ventre da besta e o bojo da fera,
embora para aqueles que eram responsáveis por ele, e não estavam
lá, fosse também o mais lucrativo dos depósitos e o mais vendável
dos estoques. No porão dos navios negreiros que por mais de 300 anos
cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa
nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma
viagem sem volta, cujos horrores geraram fortunas fabulosas, ergueram
impérios familiares construíram uma nação. O bojo dos navios da
danação e da morte foi o ventre da besta mercantilista: uma máquina
de moer carne humana, funcionando incessantemente para alimentar as
plantações e os engenhos, as minas e as mesas, a casa e a cama dos
senhores – e, mais do que tudo, os cofres dos traficantes de
homens.
A cena
foi minuciosamente descrita por centenas de observadores. Quanto mais
são os depoimentos confrontados, mais difícil é crer que tamanhos
horrores possam ter se prolongado por três séculos – e que tantos
sobrenomes famosos tenham seu fausto e suas glórias vinculados a
tantas desgraças. Mas assim foi, e assim teria sido por mais tempo
se, por circunstâncias meramente econômicas, a escravidão não
deixasse de ser um negócio tão lucrativo.
Castro
Alves compôs versos repletos de fulgor e fúria. Rugendas usou cores
fortes e criou um retrato com rigor antropológico. Ainda assim,
ambos, poeta e ilustrador, talvez tenham transmitido uma versão
branda do espetáculo hediondo que de fato se desenrolava no porão
dos negreiros. Os registros escritos por observadores – a maioria
deles britânicos – revela um quadro ainda mais assustador do que
aquele que as rimas e as tintas puderam pintar.
Era um
sonho dantesco!...
O
tombadilho, que das luzernas avermelha o brilho,
Em
sangue a se banhar
Tinir
de ferros...
estalar
do açoite...
Legiões
de homens negros como a noite,
Horrendos
a dançar (…)
Senhor
Deus dos desgraçados!
Dizei-me
vós, Senhor Deus!
Se é
loucura.. se é verdade
Tanto
horror perante os céus?
CASTRO
ALVES
Um só
exemplo. Em 1841, a belonave inglesa Fawn capturou, na costa
brasileira, o navio Dois de Fevereiro. Desde 7 de novembro de
1831, o tráfico era ilegal no Brasil e navios de guerra britânicos
patrulhavam o litoral. Após a apreensão do negreiro, o capitão do
Fawn anotou, no diário de bordo, o que viu nos porões: “Os
vivos, moribundos e os mortos amontoados numa única massa. Alguns
desafortunados no mais lamentável estado de varíola, doentes com
oftalmia, alguns completamente cegos; outros, esqueletos vivos,
arrastando-se com dificuldade, incapazes de suportares o peso de seus
corpos miseráveis. Mães com crianças pequenas penduradas em seus
peitos, incapazes de darem a elas uma gota de alimento. Como os
tinham trazidos até aquele ponto era surpreendente: todos estavam
completamente nus. Seus membros tinham escoriações por terem estado
deitados sobre o assoalho durante tanto tempo. No compartimento
inferior o maus cheiro era insuportável. Parecia inacreditável que
seres humanos sobrevivessem naquela atmosfera”. Na verdade, um em
cada cinco escravos embarcados na África não sobrevivia a viagem ao
Brasil. Os demais não viviam mais do que sete anos, em média.
Mas eram
baratos e substituíveis. Esse é um país erguido sobre três
milhões de cadáveres.
Fonte:
História do Brasil (1996), página 73.
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