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domingo, 28 de junho de 2015

A criação do neoconfucionismo

O confucionismo pregava padrões de uma conduta perfeita, desinteressada; e como os apóstatas eram tão comuns na China como qualquer outro lugar do mundo, os confucionistas conclamavam periodicamente à reforma. Se dúvida, a maior parte dos fundadores de dinastias chegou ao poder pera remediar males. Uma vez que o sistema de exames se difundiu e que os burocratas Song partilhavam uma formação clássica, os reformadores emergiram naturalmente de suas fileiras. Se examinarmos esse aspecto recorrente do confucionismo, podemos notar duas características: em primeiro lugar, os funcionários que pregavam a reforma esperavam que o imperador lhes garantisse o poder de realizá-las. Eles assumiam que a autocracia imperial estava na origem de todo o poder político, que eles podiam reforçar ou utilizar, sem pretender ir além dele nem preconizar outras formas de autoridade no Estado e na sociedade. Em segundo lugar, os reformadores potenciais representavam a grande massa do povo como recipientes passivos do despotismo benevolente que eles buscavam orientar.
Eles pensavam que os comerciantes eram permiciosamente viciados na ganância e os militares, dados à violência. O papel dos reformadores era mantê-los em seu lugar e garantir uma aplicação correta do poder central unificado, representado pelo imperador. Encarada dessa maneira, a reforma era uma nobre vocação, um meio de preservar a ordem imperial e, assim, beneficiar a massa popular, sem deixar de controlá-la.
Fan Zhong-Yan foi um exemplo precoce de reformador confucionista, cuja dedicação era simbolizada por sua máxima: “Antes que o resto do mundo comece a se inquietar, o erudito se inquieta; depois que o resto do mundo se alegra, ele se alegra”. Como bem resumiu James T. C. Liu (Em Fairbank 1957), quando Fan foi primeiro-ministro dos Song do Norte, ele promoveu reformas na burocracia, contra o favoritismo; nos exames, para tornar os sujeitos mais práticos; na posse da terra, visando dar aos funcionários locais uma chance de apoiar-se na renda, em vez de fazer pressão sobre seus devedores: na defesa, visando reforçar a milícia local, e assim por diante. Seu apelo à criação de um sistema de ensino mais amplo obteve um certo resultado Fan é também conhecido como o fundador de uma exemplar “propriedade caridosa” da terra, objetivando manter a educação dos membros de sua própria linhagem.
Wang Anshi foi o mais famoso reformador da época Song – e também o mais controvertido. Suas reformas encaradas de maneira diversa, mas análises mais recentes o mostram como um homem de mente totalitária, à frente do seu tempo. Adepto dos clássicos, lhe encarava os antigos sábios da China, até o Confúcio, como modelos de perfeição, cujas intenções, pelo menos, ainda podiam ser seguidas. As Novas Diretrizes Políticas de Wang destinavam-se a estabelecer um “sistema perfeito, autocontido e autoperpetuador”, para utilizar as palavras de Peter Bol (1992).
Contando com o apoio imperial desde 1068, Wang contornou a burocracia, fazendo com que os próprios funcionários buscassem as reformas para combater a corrupção e as desigualdades de renda por meio de uma intervenção rigorosa do Estado na economia. Com efeito, ele tentou derrubar o setor privado, como o chamaríamos agora, ao limitar estritamente a posse da terra e a acumulação de riqueza privada e ao organizar o povo em grupos de responsabilidade mútua, com o objetivo de exercer o maior controle sobre ele. Não tolerava qualquer oposição, que ele considerava imoral; em um Estado e em uma sociedade devidamente unificados, todos os homens deveriam adotar os mesmos valores, todos deveriam funcionar dentro do seu nível hierárquico e ninguém deveria ter meios independentes para manter outras pessoas, possíveis dissidentes.
Os proprietários de terra não seraim autorizados a fazer empréstimos aos seus meeiros; todo mundo deveria depender inteiramente do governo. Enquanto isso, o sistema de responsabilidade mútua criaria o poder das famílias.
Como o programa radical de Wang atacava a base da riqueza das famílias locais que, por sua vez, produziam tanto os candidatos aos exames quanto os administradores locais e comerciantes, depois de alguns anos de experiência e confusões as reformas de Wang foram derrubadas. A abordagem alternativa que se tornou popular foi exemplificada por um contemporâneo de Wang, o historiador Sima Guang. Sima pensava que a política imperial não deveria ser orientada pelos perfeitos modelos teóricos da Antiguidade, mas pelo estado da história. Assim, ele compilou um compêndio bastante célere chamado Uma reflexão detalhada para assistência ao governo, que continha crônicas dos governos das dinastias de 403 a.C. até 959 d.C. Sima tentou escolher eventos que mostrassem como os vários tipos de políticas tinham funcionando.
Essa abordagem pragmática impeliu o imperador a estudar seus predecessores e a não arriscar-se, procurando a perfeição. Devia-se certamente corrigir a ordem estabelecida, mas não transformá-la por meio de um projeto. Os proprietários de terras e os meeiros eram o resultado natural da diferença das capacidades humanas. A função-chefe do governante era selecionar talentos, que poderiam ser encontrados entre os eruditos formados pelos métodos confucianos.
Essa abordagem conservadora, que visava manter o sistema imperial confuciano em funcionamento por intermédio de tentativas para remediar seus defeitos e evitar seus males, teve um efeito a longo prazo no governo chinês. Wang tinha procurado transformar o Estado em uma ordem sociopolítica integrada, dirigida pela autoridade política. Ele não estabelecia nenhuma distribuição entre governo e sociedade, ou entre o que era político e o que era moral. Por outro lado, Sima pensava que o Estado deveria ser governado pelos eruditos como uma elite social à parte, oriunda sobretudo de famílias com uma tradição de funcionalismo público, cujos conhecimentos teriam sido adquiridos com esse objetivo.
O neoconfucionismo, como os jesuítas o chamaram mais tarde, constituiu-se durante a dinastia dos Song do Sul, depois que os Ruzhen depuseram os Song do Norte de maneira humilhante. Os cinco pensadores principais dessa escola escreveram suas obras no início do período Song, mas foram reconhecidos apenas mais tarde, quando suas várias contribuições foram sintetizadas pela impressionante erudição de seu organizador Zhu Xi (1130-1200). Seus ensinamentos não constituíam apenas mais uma versão da cosmologia do Estado, mas forneciam uma ampla visão filosófica do univeso e do lugar que o indivíduo aí ocupava.
Como os outros autores da época Song, ele também depreciou o valor do confucionismo Sui-Tang e tornou a buscar inspiração entre os clássicos confucianos do fim do período Zhou e Han. Entre os antigos clássicos, agora em número de treze, cuja produção era de cerca de 120 volumes maciços, ele selecionou os Quatro livros como contendo a essência do confucionismo: Os analectos (Lunyu), de Confúcio; o livro do principal sucessor de Confúcio, o filósofo Mêncio (por volta de 372-289 a.C.); mais a Doutrina do meio (Zhongyong) e o Grande ensinamento (Daxue), ambos fazendo parte de um indiscutível cânone.
A cormologia de Zhu Xi continha um dualismo, em que os grandes princípios imutáveis da reforma (li) moldavam as coisas materiais, que, uma vez elaboradas pelo li criavam a realidade existente. Atrás dessa dualidade, no entanto, está o Dao, o Caminho, a vasta força energética que penetra o universo e todas as coisas que existem nele. Apenas por meio de uma auto-instrução disciplinada um homem pode chegar a alcançar algum entendimento do Caminho e formar seu caráter, seguindo-o. Os neoconfucionistas da época Song acreditavam que Confúcio e Mêncio tinham traçado o verdadeiro Caminho para o aprimoramento moral do indivíduo e do mundo, mas que ele tinha cessado de ser transmitido desde então. Seu objetivo, mil e quinhentos anos mais tarde, era, portanto, “reapropriar-se do Caminho”.
Com efeito, Zhu Xi encontrou uma maneira de incluir dentro do confucionismo um elemento extremamente necessário do transcendentalismo budista. Essa nova filosofia, ao mesmo tempo eminentemente racional e humana, fora promovida por seus membros como um desafio à corte e aos eruditos, no sentido de que fossem menso egoístas e viessem de acordo com os ideais confucianos. Por meio dos escritos e dos ensinamentos dessa minoria crítica, o neoconfucionismo tornou-se a fé viva da elite chinesa até o século XX, tornando-se um dos sistemas éticos mais vastos e mais influentes do mundo.
Nas décadas mais recentes, depois do colapso da sociedade tradicional, na qual o confucionismo era a principal fé entre a elite, os estudiosos do pensamento chinês tinham de novo se “reapropriado do Caminho” por meio de uma nova apreciação dos ensinamentos de Zhu Xi. Por exemplo, um “Workshop sobre o humanismo confucionista” de três dias foi organizado em 1989, na Academia Americana de Artes e Ciências, em Cambridge, Massachussets. Talvez não seja necessários enfatizar que, embora o neoconfucionismo se preocupasse originalmente mais com a elite educada do que com as massas, o humanismo confucionista inclui hoje a ideia moderna de direitos humanos.
Os estudos dos textos neoconfucianos dirigidos por W. T. De Bary e outros ressaltam, em primeiro lugar, a relativa autonomia do erudito, cuja consciência e discernimento devem ser exercitados pelo estudo dos clássicos. A formação pessoal é “feita para si mesmo... para encontrar o Caminho dentro de si mesmo”. Estudar em seu próprio benefício, em vez de fazê-lo para os outros (os examinadores), não é uma ação egoísta, mas ao contrário, contribui para a autoformação. A autodisciplina do erudito que “se denomina” por meio de um autocontrole rigoroso é feita, em última instância, para o bem público.
Em segundo lugar, o objetivo primário é aprendizado racional e moral, considerado muito mais importante do que a arte e a literatura. Ele apoia as Cinco Relações (filho com o pai, e assim por diante), mantendo assim a ordem social, evitando a polarização entre o indivíduo e a sociedade. Em vez de individualismo radical, de Bary (1983) sugere que isso pode ser chamado de “personalismo confuciano”, mais plenamente realizado quando se está “em comunhão com os outros”.
Para atingir o povo, Zhu Xi usava o vernáculo e também preconizava o uso das reuniões periódicas locais de residentes, conhecidas como o Contrato Comunitário (Xiangyue). Embora essa instituição tenha se generalizado apenas na dinastia Ming depois de 1368, ela se originou em um modelo estabelecido em 1077 pela família Lü – uma assembleia mensal onde eram servidos alimentos e da qual se mantinha uma ata. Uma ou duas eleitas, e os comportamentos eram submetidos a regulamentos bastante detalhados. Zhu Xi elaborou uma aversão corrigida e ainda mais detalhada dos regulamentos da família Lü, que dava ênfase à hierarquia, por exemplo, ao estabelecer cinco faixas etárias, com regras de conduta precisas para os membros das diferentes categorias. O objetivo era claramente o de informar às famílias educadas de elite com elas deveriam se comportar. Zhu achava que a maneira normal de se vestir e os principais rituais seriam os da elite. Se as pessoas não pertencentes à elite viessem a estar presentes, eles não precisariam obedecer às regras, como a de sentar por ordem de idade. As correções feitas por Zhou Xi continham igualmente instruções detalhadas sobre a maneira de cumprimentar um camarada membro do Contrato, quando visitar os outros membros, como convidá-los para banquetes e como estes deveriam ser organizados – que trajes usar, que nomes colocar nos cartões de convite, etc. Que homem de organização!
Durante as discussões ocorridas nesses encontros podiam-se elogiar certos atos, corrigir erros, preservar costumes e ritos. Zhou via essa instituição como uma forma de fundir os interesses públicos e privados, como uma forma de mediação entre o Estado e a família. Mais de setecentos anos mais tarde, o método da crítica e autocrítica emergiria outra vez sob a República Popular, com um outro conteúdo – mas ambos eram exercícios de moral aplicada.
Para a elite erudita, Zhu Xi organizava academias. Ele tinha contato com cerca de 24 dessas instituições não-oficiais e mantinha vinte estudantes na sua própria academia. O indivíduo estava no centro deste ensinamento: ele deveria aprender como alcançar sua própria percepção da moralidade e assumir a responsabilidade por sua autoformação moral, em um esforço para se tornar um sábio. Zhu esperava que um governo responsável se apoiasse finalmente sobre uma “autodisciplina universal que começaria com a autocrítica do governante”. Ele seria ajudado nessa tarefa por uma série de conferências de eruditos feitas especialmente para ele (como parte do ritual da corte), assim como pelos julgamentos subsequentes dos historiadores da corte. Ao discutir questões morais, os ministros e o imperador deveriam tratar-se em pé de igualdade. Zhu Xi foi um grande editor de textos e escritor de comentários, mas sua maior contribuição foi levantar a bandeira da maioridade confuciana e mantê-la firme no alto. Como observa Denis Twitchett (in CHOC 3), a era Song assistiu à “mudança gradual da China em direção a uma sociedade ideológica, com um forte sentido da ortodoxia”. James T. C. Liu (1988) chamou os neoconfucionistas de “Transcendentalistas morais”, embora ele tenha acrescentado em tempo que “o neotradicionalismo permeava a cultura de forma tão completa que tinha perdido o poder de transformá-la”. O papel histórico de Zhu Xi e do neoconfucionismo está ainda em discussão: sete séculos de produção escrita facilitam o debate.
O menosprezo do neoconfucionismo pelo comércio pode ter sido uma das maneiras pelas quais ele contribuiu para retardar o crescimento moderno da China. Eles pensavam que os comerciantes não produziam nada, apenas moviam as coisas de um lado para outro em busca de lucro, um motivo ignóbil.
A maneira de escrever dos eruditos clássicos pode fornecer um indício para a existência de uma controvérsia permanente sobre o sentido dos textos chineses trazidos. Como Joseph Weedham mostrou, eles ciam o mundo como um fluxo de fenômenos concretos que mereceriam uma observação cuidadosa e uma listagem cronológica, mas eles não utilizavam muito categorias analíticas. A construção de um sistema lógico não era seu forte. “Mesmo no caso de alguns gigantes como Chu Hsi [Zhu Xi], diz Derk Bodde (1991), “Seu sistema deveria ser derivado de um imenso estoque de máximas registradas, de comentários dos clássicos, de contas a amigos e outros documentos esparsos. Não há nenhuma summa escrita pelo próprio meste” (ao contrário de seu contemporâneo europeu, Tomás de Aquino).
Os escritores de chinês clássico eram, por formação, mais copiladores do que compositores. Ao memorizar vastas sequências dos clássicos e de histórias, eles construíam seus próprios trabalhos por meio de uma duplicação extensiva (tipo copiar-colar) de frases e passagens e outras fontes. Essa forma de citar sem indicar a fonte equivaleria hoje a um plágio, mas os escritores chineses dos primeiros tempos viam-se mais como mantenedores dos registros do que como seus criadores.
Havia vários problemas de tradução, na medida em que faltam à gramática chinesa algumas particularidades, tais como números singulares e plurais; tempos passado, presente ou futuro; inflexões de gênero e caso, indicando relações; assim como maneiras de demonstrar a derivação de algumas palavras a partir de outras (exceto no que se refere aos radicais e às partes fonéticas dos ideogramas). Por outro lado, o leitor pode ser orientado para o sentido pelo ritmo, pela cadência ou pelo balanço de sucessivos grupos ideogramas, como descobri durante 25 anos de aulas de tradução dos documentos oficiais Qing.
Um outro problema do chinês clássico é que há poucas maneiras de generalizar ou de exprimir abstrações – como, por exemplo, a ideia de ser ou de existência como uma abstração atemporal e não-ativa. O uso de hipóteses teóricas ou das condições contrárias ao fato, assim como do raciocínio lógico indutivo e dedutivo, era bastante reduzido. Tudo isso dificultava enormemente a introdução de ideias estrangeiras novas no sistema de escrita e pode ter, por fim, dificultando o desenvolvimento dos aspectos teóricos da ciência. A mais conhecida dificuldade terminológica nas traduções inglesas refere-se à frase gewu (kewu). Usada por Zhu Xi e traduzida como “investigação das coisas”, pareceu a alguns estudiosos modernos referiu-se ao estudo científico da natureza, mas o termo significa, de fato, como Kuwang -Ching Liu explica (1990), “a aquisição do conhecimento moral por meio do estudo cuidadoso dos clássicos e do escrutínio dos princípios subjacentes à história e à vida cotidiana”.
As fontes de imprecisão que acabamos de notar, além do crescimento constante do repertório conceitual dos filósofos modernos, fazem com que o neoconfucionismo seja ainda um campo fértil para novas percepções e interesses.


Fonte: China – Uma Nova História, páginas 102 à 107.

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