O
confucionismo pregava padrões de uma conduta perfeita,
desinteressada; e como os apóstatas eram tão comuns na China como
qualquer outro lugar do mundo, os confucionistas conclamavam
periodicamente à reforma. Se dúvida, a maior parte dos fundadores
de dinastias chegou ao poder pera remediar males. Uma vez que o
sistema de exames se difundiu e que os burocratas Song partilhavam
uma formação clássica, os reformadores emergiram naturalmente de
suas fileiras. Se examinarmos esse aspecto recorrente do
confucionismo, podemos notar duas características: em primeiro
lugar, os funcionários que pregavam a reforma esperavam que o
imperador lhes garantisse o poder de realizá-las. Eles assumiam que
a autocracia imperial estava na origem de todo o poder político, que
eles podiam reforçar ou utilizar, sem pretender ir além dele nem
preconizar outras formas de autoridade no Estado e na sociedade. Em
segundo lugar, os reformadores potenciais representavam a grande
massa do povo como recipientes passivos do despotismo benevolente que
eles buscavam orientar.
Eles
pensavam que os comerciantes eram permiciosamente viciados na
ganância e os militares, dados à violência. O papel dos
reformadores era mantê-los em seu lugar e garantir uma aplicação
correta do poder central unificado, representado pelo imperador.
Encarada dessa maneira, a reforma era uma nobre vocação, um meio de
preservar a ordem imperial e, assim, beneficiar a massa popular, sem
deixar de controlá-la.
Fan
Zhong-Yan foi um exemplo precoce de reformador confucionista, cuja
dedicação era simbolizada por sua máxima: “Antes que o resto do
mundo comece a se inquietar, o erudito se inquieta; depois que o
resto do mundo se alegra, ele se alegra”. Como bem resumiu James T.
C. Liu (Em Fairbank 1957), quando Fan foi primeiro-ministro dos Song
do Norte, ele promoveu reformas na burocracia, contra o favoritismo;
nos exames, para tornar os sujeitos mais práticos; na posse da
terra, visando dar aos funcionários locais uma chance de apoiar-se
na renda, em vez de fazer pressão sobre seus devedores: na defesa,
visando reforçar a milícia local, e assim por diante. Seu apelo à
criação de um sistema de ensino mais amplo obteve um certo
resultado Fan é também conhecido como o fundador de uma exemplar
“propriedade caridosa” da terra, objetivando manter a educação
dos membros de sua própria linhagem.
Wang
Anshi foi o mais famoso reformador da época Song – e também o
mais controvertido. Suas reformas encaradas de maneira diversa, mas
análises mais recentes o mostram como um homem de mente totalitária,
à frente do seu tempo. Adepto dos clássicos, lhe encarava os
antigos sábios da China, até o Confúcio, como modelos de
perfeição, cujas intenções, pelo menos, ainda podiam ser
seguidas. As Novas Diretrizes Políticas de Wang destinavam-se a
estabelecer um “sistema perfeito, autocontido e autoperpetuador”,
para utilizar as palavras de Peter Bol (1992).
Contando
com o apoio imperial desde 1068, Wang contornou a burocracia, fazendo
com que os próprios funcionários buscassem as reformas para
combater a corrupção e as desigualdades de renda por meio de uma
intervenção rigorosa do Estado na economia. Com efeito, ele tentou
derrubar o setor privado, como o chamaríamos agora, ao limitar
estritamente a posse da terra e a acumulação de riqueza privada e
ao organizar o povo em grupos de responsabilidade mútua, com o
objetivo de exercer o maior controle sobre ele. Não tolerava
qualquer oposição, que ele considerava imoral; em um Estado e em
uma sociedade devidamente unificados, todos os homens deveriam adotar
os mesmos valores, todos deveriam funcionar dentro do seu nível
hierárquico e ninguém deveria ter meios independentes para manter
outras pessoas, possíveis dissidentes.
Os
proprietários de terra não seraim autorizados a fazer empréstimos
aos seus meeiros; todo mundo deveria depender inteiramente do
governo. Enquanto isso, o sistema de responsabilidade mútua criaria
o poder das famílias.
Como o
programa radical de Wang atacava a base da riqueza das famílias
locais que, por sua vez, produziam tanto os candidatos aos exames
quanto os administradores locais e comerciantes, depois de alguns
anos de experiência e confusões as reformas de Wang foram
derrubadas. A abordagem alternativa que se tornou popular foi
exemplificada por um contemporâneo de Wang, o historiador Sima
Guang. Sima pensava que a política imperial não deveria ser
orientada pelos perfeitos modelos teóricos da Antiguidade, mas pelo
estado da história. Assim, ele compilou um compêndio bastante
célere chamado Uma reflexão detalhada para assistência ao
governo, que continha crônicas dos governos das dinastias de 403
a.C. até 959 d.C. Sima tentou escolher eventos que mostrassem como
os vários tipos de políticas tinham funcionando.
Essa
abordagem pragmática impeliu o imperador a estudar seus
predecessores e a não arriscar-se, procurando a perfeição.
Devia-se certamente corrigir a ordem estabelecida, mas não
transformá-la por meio de um projeto. Os proprietários de terras e
os meeiros eram o resultado natural da diferença das capacidades
humanas. A função-chefe do governante era selecionar talentos, que
poderiam ser encontrados entre os eruditos formados pelos métodos
confucianos.
Essa
abordagem conservadora, que visava manter o sistema imperial
confuciano em funcionamento por intermédio de tentativas para
remediar seus defeitos e evitar seus males, teve um efeito a longo
prazo no governo chinês. Wang tinha procurado transformar o Estado
em uma ordem sociopolítica integrada, dirigida pela autoridade
política. Ele não estabelecia nenhuma distribuição entre governo
e sociedade, ou entre o que era político e o que era moral. Por
outro lado, Sima pensava que o Estado deveria ser governado pelos
eruditos como uma elite social à parte, oriunda sobretudo de
famílias com uma tradição de funcionalismo público, cujos
conhecimentos teriam sido adquiridos com esse objetivo.
O
neoconfucionismo, como os jesuítas o chamaram mais tarde,
constituiu-se durante a dinastia dos Song do Sul, depois que os
Ruzhen depuseram os Song do Norte de maneira humilhante. Os cinco
pensadores principais dessa escola escreveram suas obras no início
do período Song, mas foram reconhecidos apenas mais tarde, quando
suas várias contribuições foram sintetizadas pela impressionante
erudição de seu organizador Zhu Xi (1130-1200). Seus ensinamentos
não constituíam apenas mais uma versão da cosmologia do Estado,
mas forneciam uma ampla visão filosófica do univeso e do lugar que
o indivíduo aí ocupava.
Como os
outros autores da época Song, ele também depreciou o valor do
confucionismo Sui-Tang e tornou a buscar inspiração entre os
clássicos confucianos do fim do período Zhou e Han. Entre os
antigos clássicos, agora em número de treze, cuja produção era de
cerca de 120 volumes maciços, ele selecionou os Quatro livros
como contendo a essência do confucionismo: Os analectos (Lunyu),
de Confúcio; o livro do principal sucessor de Confúcio, o filósofo
Mêncio (por volta de 372-289 a.C.); mais a Doutrina do meio
(Zhongyong) e o Grande ensinamento (Daxue), ambos fazendo
parte de um indiscutível cânone.
A
cormologia de Zhu Xi continha um dualismo, em que os grandes
princípios imutáveis da reforma (li) moldavam as coisas
materiais, que, uma vez elaboradas pelo li criavam a realidade
existente. Atrás dessa dualidade, no entanto, está o Dao, o
Caminho, a vasta força energética que penetra o universo e todas as
coisas que existem nele. Apenas por meio de uma auto-instrução
disciplinada um homem pode chegar a alcançar algum entendimento do
Caminho e formar seu caráter, seguindo-o. Os neoconfucionistas da
época Song acreditavam que Confúcio e Mêncio tinham traçado o
verdadeiro Caminho para o aprimoramento moral do indivíduo e do
mundo, mas que ele tinha cessado de ser transmitido desde então. Seu
objetivo, mil e quinhentos anos mais tarde, era, portanto,
“reapropriar-se do Caminho”.
Com
efeito, Zhu Xi encontrou uma maneira de incluir dentro do
confucionismo um elemento extremamente necessário do
transcendentalismo budista. Essa nova filosofia, ao mesmo tempo
eminentemente racional e humana, fora promovida por seus membros como
um desafio à corte e aos eruditos, no sentido de que fossem menso
egoístas e viessem de acordo com os ideais confucianos. Por meio dos
escritos e dos ensinamentos dessa minoria crítica, o
neoconfucionismo tornou-se a fé viva da elite chinesa até o século
XX, tornando-se um dos sistemas éticos mais vastos e mais influentes
do mundo.
Nas
décadas mais recentes, depois do colapso da sociedade tradicional,
na qual o confucionismo era a principal fé entre a elite, os
estudiosos do pensamento chinês tinham de novo se “reapropriado do
Caminho” por meio de uma nova apreciação dos ensinamentos de Zhu
Xi. Por exemplo, um “Workshop sobre o humanismo
confucionista” de três dias foi organizado em 1989, na Academia
Americana de Artes e Ciências, em Cambridge, Massachussets. Talvez
não seja necessários enfatizar que, embora o neoconfucionismo se
preocupasse originalmente mais com a elite educada do que com as
massas, o humanismo confucionista inclui hoje a ideia moderna de
direitos humanos.
Os
estudos dos textos neoconfucianos dirigidos por W. T. De Bary e
outros ressaltam, em primeiro lugar, a relativa autonomia do erudito,
cuja consciência e discernimento devem ser exercitados pelo estudo
dos clássicos. A formação pessoal é “feita para si mesmo...
para encontrar o Caminho dentro de si mesmo”. Estudar em seu
próprio benefício, em vez de fazê-lo para os outros (os
examinadores), não é uma ação egoísta, mas ao contrário,
contribui para a autoformação. A autodisciplina do erudito que “se
denomina” por meio de um autocontrole rigoroso é feita, em última
instância, para o bem público.
Em
segundo lugar, o objetivo primário é aprendizado racional e moral,
considerado muito mais importante do que a arte e a literatura. Ele
apoia as Cinco Relações (filho com o pai, e assim por diante),
mantendo assim a ordem social, evitando a polarização entre o
indivíduo e a sociedade. Em vez de individualismo radical, de Bary
(1983) sugere que isso pode ser chamado de “personalismo
confuciano”, mais plenamente realizado quando se está “em
comunhão com os outros”.
Para
atingir o povo, Zhu Xi usava o vernáculo e também preconizava o uso
das reuniões periódicas locais de residentes, conhecidas como o
Contrato Comunitário (Xiangyue). Embora essa instituição tenha se
generalizado apenas na dinastia Ming depois de 1368, ela se originou
em um modelo estabelecido em 1077 pela família Lü – uma
assembleia mensal onde eram servidos alimentos e da qual se mantinha
uma ata. Uma ou duas eleitas, e os comportamentos eram submetidos a
regulamentos bastante detalhados. Zhu Xi elaborou uma aversão
corrigida e ainda mais detalhada dos regulamentos da família Lü,
que dava ênfase à hierarquia, por exemplo, ao estabelecer cinco
faixas etárias, com regras de conduta precisas para os membros das
diferentes categorias. O objetivo era claramente o de informar às
famílias educadas de elite com elas deveriam se comportar. Zhu
achava que a maneira normal de se vestir e os principais rituais
seriam os da elite. Se as pessoas não pertencentes à elite viessem
a estar presentes, eles não precisariam obedecer às regras, como a
de sentar por ordem de idade. As correções feitas por Zhou Xi
continham igualmente instruções detalhadas sobre a maneira de
cumprimentar um camarada membro do Contrato, quando visitar os outros
membros, como convidá-los para banquetes e como estes deveriam ser
organizados – que trajes usar, que nomes colocar nos cartões de
convite, etc. Que homem de organização!
Durante
as discussões ocorridas nesses encontros podiam-se elogiar certos
atos, corrigir erros, preservar costumes e ritos. Zhou via essa
instituição como uma forma de fundir os interesses públicos e
privados, como uma forma de mediação entre o Estado e a família.
Mais de setecentos anos mais tarde, o método da crítica e
autocrítica emergiria outra vez sob a República Popular, com um
outro conteúdo – mas ambos eram exercícios de moral aplicada.
Para a
elite erudita, Zhu Xi organizava academias. Ele tinha contato com
cerca de 24 dessas instituições não-oficiais e mantinha vinte
estudantes na sua própria academia. O indivíduo estava no centro
deste ensinamento: ele deveria aprender como alcançar sua própria
percepção da moralidade e assumir a responsabilidade por sua
autoformação moral, em um esforço para se tornar um sábio. Zhu
esperava que um governo responsável se apoiasse finalmente sobre uma
“autodisciplina universal que começaria com a autocrítica do
governante”. Ele seria ajudado nessa tarefa por uma série de
conferências de eruditos feitas especialmente para ele (como parte
do ritual da corte), assim como pelos julgamentos subsequentes dos
historiadores da corte. Ao discutir questões morais, os ministros e
o imperador deveriam tratar-se em pé de igualdade. Zhu Xi foi um
grande editor de textos e escritor de comentários, mas sua maior
contribuição foi levantar a bandeira da maioridade confuciana e
mantê-la firme no alto. Como observa Denis Twitchett (in CHOC 3), a
era Song assistiu à “mudança gradual da China em direção a uma
sociedade ideológica, com um forte sentido da ortodoxia”. James T.
C. Liu (1988) chamou os neoconfucionistas de “Transcendentalistas
morais”, embora ele tenha acrescentado em tempo que “o
neotradicionalismo permeava a cultura de forma tão completa que
tinha perdido o poder de transformá-la”. O papel histórico de Zhu
Xi e do neoconfucionismo está ainda em discussão: sete séculos de
produção escrita facilitam o debate.
O
menosprezo do neoconfucionismo pelo comércio pode ter sido uma das
maneiras pelas quais ele contribuiu para retardar o crescimento
moderno da China. Eles pensavam que os comerciantes não produziam
nada, apenas moviam as coisas de um lado para outro em busca de
lucro, um motivo ignóbil.
A
maneira de escrever dos eruditos clássicos pode fornecer um indício
para a existência de uma controvérsia permanente sobre o sentido
dos textos chineses trazidos. Como Joseph Weedham mostrou, eles ciam
o mundo como um fluxo de fenômenos concretos que mereceriam uma
observação cuidadosa e uma listagem cronológica, mas eles não
utilizavam muito categorias analíticas. A construção de um sistema
lógico não era seu forte. “Mesmo no caso de alguns gigantes como
Chu Hsi [Zhu Xi], diz Derk Bodde (1991), “Seu sistema deveria ser
derivado de um imenso estoque de máximas registradas, de comentários
dos clássicos, de contas a amigos e outros documentos esparsos. Não
há nenhuma summa escrita pelo próprio meste” (ao contrário
de seu contemporâneo europeu, Tomás de Aquino).
Os
escritores de chinês clássico eram, por formação, mais
copiladores do que compositores. Ao memorizar vastas sequências dos
clássicos e de histórias, eles construíam seus próprios trabalhos
por meio de uma duplicação extensiva (tipo copiar-colar) de frases
e passagens e outras fontes. Essa forma de citar sem indicar a fonte
equivaleria hoje a um plágio, mas os escritores chineses dos
primeiros tempos viam-se mais como mantenedores dos registros do que
como seus criadores.
Havia
vários problemas de tradução, na medida em que faltam à gramática
chinesa algumas particularidades, tais como números singulares e
plurais; tempos passado, presente ou futuro; inflexões de gênero e
caso, indicando relações; assim como maneiras de demonstrar a
derivação de algumas palavras a partir de outras (exceto no que se
refere aos radicais e às partes fonéticas dos ideogramas). Por
outro lado, o leitor pode ser orientado para o sentido pelo ritmo,
pela cadência ou pelo balanço de sucessivos grupos ideogramas, como
descobri durante 25 anos de aulas de tradução dos documentos
oficiais Qing.
Um outro
problema do chinês clássico é que há poucas maneiras de
generalizar ou de exprimir abstrações – como, por exemplo, a
ideia de ser ou de existência como uma abstração atemporal e
não-ativa. O uso de hipóteses teóricas ou das condições
contrárias ao fato, assim como do raciocínio lógico indutivo e
dedutivo, era bastante reduzido. Tudo isso dificultava enormemente a
introdução de ideias estrangeiras novas no sistema de escrita e
pode ter, por fim, dificultando o desenvolvimento dos aspectos
teóricos da ciência. A mais conhecida dificuldade terminológica
nas traduções inglesas refere-se à frase gewu (kewu). Usada
por Zhu Xi e traduzida como “investigação das coisas”, pareceu
a alguns estudiosos modernos referiu-se ao estudo científico da
natureza, mas o termo significa, de fato, como Kuwang -Ching Liu
explica (1990), “a aquisição do conhecimento moral por meio do
estudo cuidadoso dos clássicos e do escrutínio dos princípios
subjacentes à história e à vida cotidiana”.
As
fontes de imprecisão que acabamos de notar, além do crescimento
constante do repertório conceitual dos filósofos modernos, fazem
com que o neoconfucionismo seja ainda um campo fértil para novas
percepções e interesses.
Fonte:
China – Uma Nova História, páginas 102 à 107.
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