Pílula do dia seguinte
FERNANDO GABEIRA - O ESTADO DE S.PAULO
07 Novembro 2014 | 02h 03
Com robusta experiência em derrotas eleitorais, arrisco-me a prescrever esta pílula do dia seguinte.
Um
dos primeiros aprendizados na derrota é superar qualquer impulso de
culpar os eleitores ou regiões inteiras pelo resultado das urnas. É
preciso examinar as políticas que nos levaram a esse resultado, os erros
que cometemos ao longo do caminho.
Outra
ilusão é supor que, eleito, o adversário vá realizar a política de quem
perdeu. Muitos esperam mudança na política econômica de Dilma. Sou mais
cético, embora reconheça a força da realidade, a enorme pressão que os
próprios fatos vão exercer sobre seu governo.
A
política econômica de Dilma não nasceu apenas de sua cabeça. Ela tem
uma base teórica que sempre foi bastante influente entre os economistas e
acadêmicos. O centro do debate é o papel do Estado na economia. Até a
crise de 2008 era uma visão na defensiva na própria conjuntura mundial.
Como casais condenados a viver juntos, era preciso rediscutir a relação
Estado e mercado, o peso que teriam na nova pós-crise.
Isso
aconteceu até nos Estados Unidos, onde Obama lançou um plano de
recuperação na economia, que agora chega a seu fim, atingindo o
objetivo. Caminhos teóricos distintos levaram a escolhas distintas. Na
compreensão de Obama, o Estado precisava impulsionar a economia porque é
dele que depende sua sobrevivência.
A
intervenção do Estado na economia brasileira, em linhas gerais,
enfraqueceu o papel do mercado, pelo fortalecimento da intervenção do
governo. No campo da energia, as intervenções de Dilma para baixar o
preço da eletricidade, voluntariosamente, e conter o preço da gasolina
são evidências de que superestimam o papel do Estado. Aliadas, é claro, a
uma grande vontade de ganhar as eleições. Os estímulos à indústria
automobilística foram uma faca de dois gumes. Eles agravaram o problema
da mobilidade urbana, que era um dos motores das manifestações de 2013.
Essa política é uma contradição ambulante. Além disso, valeu um processo
de protecionismo na Organização Mundial do Comércio.
No
meu ponto de vista, o governo esteve sempre mais preocupado com a área
da economia que domina: estatais e, indiretamente, a constelação de
empresas que giram em torno delas. Houve estímulos via BNDES criando uma
órbita em torno do governo. Uma órbita favorecida: toma-se dinheiro
público coberto pelo sigilo bancário.
A
conclusão oficial foi expressa por Guido Mantega: nossa política
econômica foi aprovada nas eleições. A alguns quilômetros dali, Dilma
afirmou que a mudança foi a palavra mais ouvida na campanha. Não vi
contradição entre os dois, porque Dilma jamais associou a palavra
mudança à economia, sempre afirmou que estava no caminho certo, que seu
modelo era exemplo universal de como atravessar uma crise sem perda de
salário ou emprego.
Durante
esse período de exaltação do próprio desempenho, o governo jogou para
baixo do tapete dados essenciais. Dois deles já vieram à tona: o rombo
de R$ 20 bilhões nas contas públicas e o da redução da pobreza. Outros
esperam no pipeline: índice de desmatamento na Amazônia, redução da
pobreza, performance no ensino.
Dilma
afirma querer esclarecido, em todos os detalhes e nomes, o escândalo de
corrupção na Petrobrás. Tenho inúmeras razões para duvidar. O governo
tentou bloquear a CPI, os vazamentos indicaram que a própria base do
governo está envolvida; Lula e Dilma foram mencionados pelo doleiro
Alberto Youssef. A realidade é que o governo vai considerar estratégico
desqualificar as investigações. E não está sozinho nisso. As grandes
empresas envolvidas contrataram poderosos advogados que fracassaram no
mensalão, mas ganharam experiência para o novo confronto: o petrolão.
O
Supremo terá 10 dos 11 ministros indicados pelo PT. Claro que alguns
deles sabem que o PT passa e o Supremo fica. Mas sua gratidão será
cobrada, como foi intensamente cobrada de Joaquim Barbosa. Esse processo
do escândalo na Petrobrás será uma intensa luta entre quem quer saber e
punir e quem quer esconder e inocentar. Não creio no êxito da tentativa
de esconder. O escândalo ultrapassou as fronteiras: auditorias
internacionais serão realizadas e as leis americanas são difíceis de
driblar.
O
assalto à Petrobrás e a política econômica se entrelaçam e podem nos
levar a um debate um pouco mais concreto sobre este capitalismo de
Estado que o PT impulsiona. A corrupção instalou-se no cofre da maior
empresa estatal e se estendeu para toda a constelação que gira em torno
dela.
Dilma
afirmou que vai entregar o Brasil pronto para um novo ciclo de
crescimento. Obama fala como se tivesse concluído a tarefa. Alguém
perdeu tempo nestes cinco anos.
Nunca
tive a experiência de uma vitória em eleição majoritária. Mas havia uma
questão temível esperando o vencedor na manhã seguinte: como fazer tudo
o que prometi?
Os
anos serão duros para Dilma. Seca no Sudeste, seca de ideias sobre
política de recursos hídricos, economia estagnada e uma tentativa de
provar que vivemos na realidade dos programas de televisão da campanha.
Será preciso um grande plantel de macunaímas para o governo escapar
ileso dos fatos, das leis da economia e de um bilionário processo de
corrupção. E não podem dizer como o nosso herói sem nenhum caráter: ai,
que preguiça!
O
desdobramento de uma política econômica fracassada e o desenrolar do
maior processo de corrupção da história do País devem produzir um debate
muito mais próximo da realidade do que uma fantasia novelesca da agenda
eleitoral. Minha esperança é que as pessoas olhem bem para a falência
da economia e a gravidade da corrupção na Petrobrás. E esqueçam um pouco
quem foi parado na Lei Seca, quem estava preparando tirar a comida da
mesa dos pobres para depositá-la no Banco Central independente.
Assistimos a uma ficção da pior qualidade. Precisamos voltar à realidade
cotidiana. O assalto à Petrobrás foi uma audácia. Audácia maior é o
assalto à nossa lucidez.
*Fernando Gabeira é jornalista
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