por por Sergio D. Simon
A recente guerra de Israel contra o Hamas em Gaza chamou novamente a atenção do mundo para a situação dos refugiados palestinos. Inúmeras personalidades políticas, artísticas e da imprensa, de todos os continentes, pronunciaram-se sobre o assunto, muitas vezes com pouquíssimo conhecimento de causa, censurando Israel pelo tratamento que tem sido dado aos refugiados palestinos.
Edição 85 - Setembro de 2014
Esquecem-se estas pessoas que a situação atual não pode ser isolada de todo um contexto histórico que a precedeu e que levou ao explosivo estado atual. A situação de hoje não é de responsabilidade exclusiva de Israel, mas sim de vários personagens da política do Oriente Médio.
A rainha Rania al Abdullah da Jordânia publicou recentemente um artigo em vários jornais do mundo, inclusive n’ O Estado de São Paulo, condoendo-se pela situação dos refugiados palestinos e exortando os leitores a apoiar a causa e fazer doações para as entidades internacionais que cuidam desses refugiados. Em uma resposta espontânea, escrevi à rainha Rania uma carta aberta na qual sustento que a situação dos palestinos não é de responsabilidade exclusiva do Estado judeu, mas em grande parte é devida ao tratamento que o Reino Hachemita da Jordânia dispensou a eles desde a fundação do Estado de Israel, em 1948. Para minha surpresa, essa carta espalhou-se rapidamente pela internet, tendo sido traduzida e publicada em inúmeros países e causando uma enxurrada de e-mails que entopem minha caixa postal há 3 semanas. Creio que o que tocou as pessoas nessa carta foi uma pequena explanação histórica sobre o papel do reino da Jordânia, em especial do rei Hussein (sogro da rainha Rania), na criação e manutenção dos refugiados palestinos. Gostaria aqui de discorrer um pouco mais sobre o assunto, mostrando também o que se passou com os refugiados judeus de países árabes que foram absorvidos pela sociedade israelense.
Passei o ano de 1968 morando em Israel, no Machon le Madrichei Chutz Laaretz. Eram tempos gloriosos para Israel, logo após a Guerra dos Seis Dias, com a reconquista da santa Cidade Velha de Jerusalém pelo exército de Israel.
Se por um lado estávamos todos exultantes com a recente vitória, um incidente me tocou fortemente: durante uma excursão do Machon, nosso ônibus foi cercado na cidade de Jenin (Shchem) por uma multidão de mulheres e meninas adolescentes, que furiosamente erguiam seus punhos contra nós e gritavam slogans contra os invasores. O olhar de ódio que presenciei naqueles rostos me fez entender que o problema do território palestino teria que ser resolvido rapidamente por Israel, sob o risco de este se tornar o grande entrave para o desenvolvimento do Estado de Israel. Desde então tenho lido e me interessado constantemente pelo assunto, sempre surpreso pela inabilidade dos países árabes em pelo menos tentar resolver esta situação.
A manutenção dos refugiados palestinos como párias da sociedade sempre foi de interesse político para os vizinhos de Israel. Quando da Declaração da Independência de Israel, seguida da Guerra da Independência, em 1948, cerca de 70% da população que vivia no território declarado como Estado de Israel refugiou-se em países árabes vizinhos, alguns por medo, muitos por orientação das rádios árabes vizinhas e uma parte expulsa pelo próprio exército de Israel. Estima-se que o total chegasse a mais de 700.000 pessoas, na época. Quase todos se refugiaram na Jordânia (principalmente na margem ocidental), em Gaza, na Síria e no Líbano, com muito poucos tendo conseguido chegar ao Egito. A United Nations Relief and Works Agency (UNRWA) contabilizou na época 711.000 pessoas como refugiados palestinos, sendo que a resolução 194 da ONU, de dezembro de 1948, reconhecia o direito de retorno a estes refugiados e a todos os seus descendentes em linha patrilinear. Dos 711.000 refugiados originais de 1948 restam atualmente apenas cerca de 30.000 pessoas vivas, mas seus descendentes diretos por linhagem patrilinear alcançam hoje quase 5.000.000 de pessoas.
Ao invés de abrigar estes refugiados, a maioria desses países sempre os tratou não como “irmãos”, mas como cidadãos de segunda categoria, sem possibilidade de absorção em suas sociedades. Em especial no Líbano, em Gaza e na Jordânia os refugiados palestinos foram instalados em “campos provisórios” de refugiados, que nada mais eram do que campos de concentração, cercados por arame farpado, onde condições desumanas de vida eram oferecidas. Estes campos, quase todos ao longo da fronteira com Israel, serviram por décadas como uma arma política útil para se conseguir concessões políticas e doações da ONU. Jamais se propôs, para estes refugiados, um plano de educação, capacitação e absorção progressiva na sociedade local.
Estas condições subumanas de vida eram o caldo ideal para a criação dos movimentos terroristas entre os refugiados. O mais conhecido deles, sem dúvida, é a Organização para a Liberação da Palestina (OLP). Fundada no Cairo durante a Cúpula da Liga Árabe, em 1964, e dirigida a partir de 1969 por Yasser Arafat, a Carta original da OLP pedia a luta armada contra Israel e o direito de retorno para os refugiados palestinos. Montada com forte estrutura de guerrilha (seus combatentes guerrilheiros conhecidos na época como “fedayin”), a OLP realizou sangrentos atentados contra Israel, atacando frequentemente kibutzim e moshavim, além de escolas infantis, ataques em estradas e o famoso massacre da delegação israelense aos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, levada a cabo pela organização Setembro Negro. Ao longo do tempo, a OLP tornou-se uma organização complexa, abrigando vários outros grupos palestinos de diversas tendências, tais como a PFLP - Frente Popular para a Liberação da Palestina (de orientação marxista-leninista, fundada pelo Dr. George Habash, um palestino cristão, em 1967) e a DFLP - Frente Democrática para a Liberação da Palestina (de orientação ainda mais esquerdista, maoísta, fundada por Nayef Hawatmeh em 1969), além de vários outros grupos menores, de orientação política variada.
Esta mistura ideológica resultou em dificuldades, evidentemente. Ao Reino Hachemita da Jordânia não interessava toda essa ebulição política dentro de seu território. A OLP (que se juntara ao movimento Fatah em 1967) passara a ser uma força civil que dominava importantes áreas da Jordânia, fazendo controles e bloqueios de estradas e tentando sempre humilhar os soldados e a autoridade real. Em nome da estabilidade política local, o Rei Hussein atacou diretamente a população palestina na Jordânia, em setembro de 1970, no episódio que ficou conhecido como Setembro Negro. Nesta luta, que durou 10 meses, cerca de 20.000 palestinos foram mortos pelos jordanianos, segundo Arafat (os números variam de acordo com as fontes, mas foram muitos milhares de palestinos, seguramente). A direção da OLP teve que deixar o país, instalando-se então em Damasco e Beirute.
A OLP-Fatah, ao longo dos anos, acabou mudando sua postura em relação à destruição do Estado de Israel, tendo Arafat passado a aceitar a coexistência de um Estado palestino ao lado do estado judaico. Em 1993, Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, então primeiro ministro de Israel, terminaram por assinar, sob as vistas do presidente americano Bill Clinton, os Acordos de Oslo. Neste documento, Israel se comprometia a gradualmente retornar o território conquistado em 1967 para as mãos da OLP e os palestinos se comprometiam a aceitar e conviver pacificamente com o Estado judaico. Foi criada, nessa ocasião, a Autoridade Nacional Palestina, órgão que governaria os territórios palestinos da Cisjordânia e de Gaza.
O acordo de Oslo progrediu lentamente nos meses subsequentes, mas foi seriamente comprometido pelo assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995 (por Ygal Amir, um ultranacionalista da direita israelense). Esta sequência de conversas de paz entre palestinos e israelenses terminou em julho de 2000, quando Arafat e Ehud Barak, então primeiro ministro de Israel, não conseguiram chegar a um acordo na Cúpula de Camp David, novamente sob os auspícios de Bill Clinton. A péssima administração de Arafat e da Autoridade Palestina, com inúmeras acusações de corrupção, nepotismo, ligações com o terrorismo palestino e absoluta falta de um mínimo de princípios de democracia fez com que Arafat perdesse a confiança de Israel e dos Estados Unidos. Em 2004, Arafat, por forte pressão internacional, passa o poder para Mahmoud Abbas, considerado um líder pouco expressivo, mas moderado, e que até hoje lidera a Autoridade Palestina.
O Hamas, por sua vez, é uma organização de caráter fundamentalista islâmico de origem sunita, proveniente da Irmandade Muçulmana, tendo sido fundada em 1987 pelo Sheik Ahmed Yassin. O Hamas conta com um braço armado terrorista conhecido como Brigadas Izz ad-Din al-Qassam (ou Brigadas Al-Qassam). O Hamas prega em sua Carta de Princípios a eliminação completa do Estado judaico, o estabelecimento de um Estado islâmico fundamentalista e o direito de retorno para todos os descendentes de palestinos ao que é hoje o território israelense. A Carta nega ainda a possibilidade de conversações de paz com Israel, alegando que a Jihad é a única opção possível na luta pelo Estado islâmico. Conclama todo palestino a lutar contra o “inimigo que age como os nazistas”, condenando todos os judeus à morte, sejam militares, idosos, mulheres ou crianças. Em vários de seus capítulos, a Carta fala da influência maligna dos judeus sobre a história da humanidade, culpando-os por todos os grandes eventos históricos recentes (inclusive a Revolução Francesa!), numa clara posição racista anti-judaica e não apenas anti-Israel. Esta Carta de Princípios nunca foi modificada e, devido aos seus ataques terroristas contra a população civil de Israel, tanto o Hamas como as Brigadas Al-Qassam são consideradas organizações terroristas pelos Estados Unidos e pela Europa.
Além de seu braço político, o Hamas mantém uma rede de assistência social para os empobrecidos palestinos, oferecendo escolas e creches. Isto fez com que ganhasse apoio da população local, principalmente em Gaza, e consequentemente vencesse as eleições locais em 2006, derrotando o Fatah. Desde 2007 o Hamas governa Gaza e o Fatah governa a Cisjordânia, com altos e baixos no relacionamento entre os dois grupos. Agora, em 2014, o Hamas e o Fatah anunciaram que novamente estavam se unindo pela luta do povo palestino, mas na prática esta “união” foi interrompida pela guerra de Israel contra o Hamas.
Os refugiados judeus
Os judeus habitaram os países árabes desde tempos imemoriais. Estima-se que o judaísmo no Irã (antiga Pérsia) date dos tempos bíblicos, da época do exílio babilônico, há quase 3.000 anos. Os primeiros judeus chegaram ao Marrocos há 2.000 anos, quando da destruição do Segundo Templo pelos romanos, no ano 70 E.C., tendo influenciado profundamente a cultura berbere local. E há também indícios de que os judeus não sairam todos do Egito com Moisés, tendo restado algumas cidades judaicas no sul do país, por volta de 1250 A.E.C.
Em todos esses países de crença muçulmana os judeus viviam geralmente como uma categoria especial de cidadãos, às vezes protegidos pelo governante local, às vezes perseguidos. Mas raramente se observava migrações maciças por perseguição em massa. Uma exceção talvez tenha sido o êxodo dos judeus do Marrocos no séc. 19, quando as perseguições contra eles se tornaram constantes e ameaçadoras. Isto, aliado à pobreza e falta de perspectiva para os jovens, fez com que boa parte da população judaica emigrasse a partir de 1810 para lugares distantes como a Amazônia brasileira, o Peru e a Venezuela.
Assim como populações de árabes foram deslocadas com o estabelecimento do Estado de Israel, as enormes comunidades judaicas dos países árabes também terminaram expulsas. Muito antes do estabelecimento de Israel, as populações judaicas passavam por constrangimentos e perseguições, muitas vezes similares aos pogroms da Europa (inúmeras matanças em Shiraz, Alepo, Fez, entre outras).
Calcula-se que perto de 1.000.000 de judeus de países árabes e muçulmanos acabaram expulsos de sua terra natal após a criação de Israel, sendo que a maior parte terminou migrando para Israel. A França recebeu cerca de 250.000 desses refugiados.
As primeiras ondas migratórias substanciais para o Estado de Israel se deram a partir do Iêmen e do Iraque. Calcula-se que entre 1948 e 1951 chegaram a Israel cerca de 250.000 refugiados destes países. Em 1970, mais de 600.000 imigrantes judeus de países árabes já haviam se estabelecido em Israel. Estas ondas migratórias não foram simultâneas. Enquanto Iraque e Iêmen foram as grandes imigrações iniciais, a expulsão dos judeus do Egito foi um pouco mais tardia, com seu pico em 1956, durante e logo após a Campanha do Sinai. Desta mesma época data o êxodo maior dos judeus do Marrocos.
O Líbano foi o único país árabe a ver um aumento de sua comunidade judaica nos anos 50, com imigrantes vindos principalmente da Síria. Já em 1947, após a queima de sinagogas e do assassinato de 75 judeus por muçulmanos em Alepo, cerca de metade da população judaica deixara o país, principalmente em direção a Beirute. Logo após a independência de Israel em 1948, o então presidente sírio Husni al Zaim permitiu a saída pacífica de grande número de judeus, novamente a maioria indo em direção ao Líbano e cerca de 5.000 chegando a Israel. Esta passagem pelo Líbano, no entanto, foi transitória, e após a Guerra Civil libanesa, nos anos 70, já praticamente não havia uma comunidade judaica em Beirute.
Os judeus chegaram a Israel sem nada possuir, uma vez que todos os bens materiais, como imóveis, terras, dinheiro e jóias, foram proibidos de deixar a maioria dos países árabes. Muitos chegavam com um nível social e educacional muito baixo, como os judeus iemenitas e, mais tarde, os etíopes, porque assim eram as condições destas comunidades nesses países. Mas muitos tinham algum grau de educação e uma pequena quantidade deles chegavam a ter um ótimo nível educacional, apesar de educação universitária não ser uma tradição entre eles, como era em algumas comunidades européias.
Tal como os palestinos, os cerca de 700.000 refugiados judeus em Israel foram inicialmente alojados em acampamentos temporários, que eram chamados de Ma’abarot (do hebraico ma’avar = em trânsito; aliás, a mesma raiz da palavra Ivrim, hebreus). A intenção do Estado de Israel, no entanto, era absorver e integrar rapidamente estes refugiados à nova sociedade israelense. As ma’abarot tinham serviços contínuos de saúde, higiene, alimentação e educação, e várias destas ma’abarot transformaram-se em novas cidades (Kiriat Pituach = cidade em desenvolvimento), modernas e totalmente urbanizadas (as cidades atuais de Kiriat Shemona, Sderot e Migdal HaEmek, por exemplo, começaram como ma’abarot). Apesar das condições difíceis desse início da imigração dos refugiados judeus (aliás, toda a sociedade israelense passava por enormes dificuldades no início da criação do Estado) e da vida sofrida dentro de tendas de lona ou de lata, sob o calor escaldante de Israel, o modelo de absorção de imigrantes revelou-se um sucesso.
A última ma’abará foi finalmente fechada em 1963 – ou seja, em menos de 15 anos toda aquela multidão foi absorvida pela sociedade israelense. No censo de 2003, os descendentes desses imigrantes judeus de países árabes somavam cerca de 60% da população total de Israel.
A perda material dos refugiados judeus foi enorme, evidentemente. A World Organization of Jews from Arab Countries (WOJAC) estimou em 2007 que estes bens somariam cerca de 300 bilhões de dólares, em valores atualizados. Jamais houve qualquer menção de compensação financeira por parte dos governantes de países árabes.
Não há paralelo possível entre os dois grupos de refugiados, árabes e judeus. As condições históricas que levaram à formação destas duas populações foram totalmente diferentes. Enquanto os palestinos saíram do território israelense por incitação dos líderes de países árabes vizinhos, por medo e por expulsão pelo exército de Israel, os judeus deixaram os países árabes em condições mais complexas: muitos almejavam uma vida melhor na Terra de Israel, concretizando o seu sonho sionista, enquanto outros foram expulsos em curto prazo de tempo, de maneira violenta. Um grupo não serve de “moeda de troca” do outro – tal comparação não seria justa. O que se pode comparar, sim, foi o processo de absorção e acolhimento que as duas populações receberam: os palestinos continuam como refugiados há quase 70 anos, sem solução à vista para seu problema, enquanto que os refugiados judeus se mesclaram e se integraram numa sociedade moderna, dinâmica e em constante transformação.
Sergio D. Simon é médico e presidente do Museu Judaico de São Paulo.
Fonte: http://www.morasha.com.br/historia-de-israel/o-drama-dos-refugiados-palestinos-e-judeus.html